terça-feira, 7 de abril de 2009

Curriculum Vitae (conto)

Vou te contar como é: Tu acorda por volta das 11 horas da manhã talvez um pouco antes ou depois, e passa o dia todo fazendo alguma coisa, qualquer coisa, tipo a tua rotina, ai quando chega a noite e tu ta razoavelmente cansado, tu te deita e tenta dormir. Aí começa tudo, depois de cerca de meia hora tu percebe que ainda não ta dormindo. Então, determinado a dormir decide ler algo pra ver se pega no sono com mais facilidade. E BAM! Bem assim quando tu menos espera, são seis da manhã, ta amanhecendo e tu já devorou meio “rumo ao farol” da Virginia Woolf aquela cabrita maluca. E aí? E aí tu acaba de ser sorteado na loteria dos fodidos, acaba de ganhar um premio que, não tenha duvida, vai ser teu pro resto da vida! Bem vindo ao bosque dos suicidas, o terceiro circulo do inferno, parabéns, tu é uma porra de um insone! Os estágios são facilmente identificáveis, primeiro há a fase um. Negação: Tu te deita na cama na hora de costume e mesmo estando podre e exausto por estar a já 24 horas acordado, não consegue dormir. Tu entra em negação e concentra toda a tua força de vontade no simples propósito de ficar inconsciente por algumas horas, só para reorganizar o cérebro ou algo assim, mas nada disso. São 6 da manhã novamente, e o mais próximo do sono que tu conseguiste chegar foi uma série de pensamentos confusos se acavalando no teu cérebro como uma espécie doentia de slide show da tua vida. No terceiro dia enfim chega a redenção, tu ta tão exausto e tão exaurido física e mentalmente que começa a ter pequenos surtos narcolépticos, e a cair no sono no meio de qualquer coisa que esteja fazendo. O engraçado é que quando tu acorda aproximadamente 10 ou 15 horas depois, tu ta imprestável, mais exausto do que quando tava acordado a três dias consecutivos. Além disso, quando tu não dorme, teu cérebro como mecanismo de defesa e auto-preservação bombardeia tuas sinapses nervosas com dopamina, endorfina, adrenalina, serotonina, cocaína, cafeína, efedrina e qualquer outra porra que ele tenha disponível pra liberar, ou seja, tu vira um maníaco-depressivo-bipolar. A falta de sono pode por qualquer filho da puta a ponto do suicídio. Depois de umas três semanas repetindo essa rotina, acredite, tu acaba mesmo pensando em meter uma cartela de antidepressivos goela abaixo, ou uma porra de uma bala bem no meio dos olhos, e ao mesmo tempo toda essa porra liberada no organismo te da momentos de plena alegria e desapego. Pronto, você é o Kurt Cobain, ou quem sabe a minha mãe! É aí que entra a fase dois. Falsos alarmes: depois de pelo menos um mês de tentativas é provável que tu consiga regular teu horário e dormir satisfatórias seis ou quatro horas por noite, até que... BAM! Mais três malditos dias sem dormir. Não soa tão “fabulous” ter insônia agora não é? Você recorre a ajuda médica, espiritual, monetária, você chama a sua mãe, chora, grita e mesmo assim... Nada. Todas as drogas e terapias pelas quais tu podes optar vão te levar a um caminho lento até a cura, e por lento eu quero dizer “over the years” e o que você realmente quer: uma boa noite de sono. Bom isso meu amigo, ta completamente fora do teu alcance. É precisamente ai que entra a fase três. Aceitação: Tu simplesmente aceita que regular teu sono ta completamente fora do teu alcance e procura ficar acordado e produtivo a maior parte do tempo, ou seja, tu desiste de dormir, até que literalmente teu cérebro tenha um meltdown e desligue por conta própria.
Isso foi só um prólogo pra explicar o estado em que me encontrava naquela manhã em particular. Fato é que, com insônia ou sem insônia, a vida continua e as contas continuam vindo. Eu tava desempregado, pela primeira vez em meses. Me botaram pra rua porque me pegaram babando no banheiro num dos meus ataques narcolépticos inesperados, não teriam me demitido não fosse a mulher da limpeza ter dito que me encontrou drogado no maldito banheiro. Enfim eu tava novamente duro e tinha um aluguel e uma porção de contas pra acertar. Os dias iam passando e o maldito telefone não tocava me chamando pra qualquer entrevista. Além de não conseguir dormir ainda tinha tempo demais nas minhas mãos, ou seja, a beira da loucura. Já eram 6 da manhã novamente não sei bem de que dia, ou de que mês, sei que amanhecia novamente. Eu tomei alguns baldes de café antes de sair de casa, fumei alguns milhares de cigarros também, começava a esquentar e eu fiquei imaginando que dia terrível ia ser pra se estar dentro de um ônibus. Não que eu tivesse qualquer outra escolha, mas tava imaginando com antecedência como se passaria o dia, e realmente desejei do fundo do meu coração que Deus tivesse piedade e eu encontrasse uma AK-47 caída na primeira esquina pra poder ir fuzilando algumas pessoas no caminho ou quem sabe alguns jatos se caso algum inventasse de voar por cima da minha cabeça. Ensaiei sair de casa, como sempre faço pra ter certeza de não esquecer nada, quando dei o quarto ou quinto passo porta afora me dei conta de que esquecia meu celular e retornei pra pega-lo e tomar mais uma xícara de café de saideira. Desci três andares pelas escadas tomando muito cuidado pra não dar de cara com nenhum vizinho e ter de trocar cordialidades estúpidas, meu humor tava péssimo, ficava imaginando cenas de massacre continuas, algo do tipo responder ao “bom dia” do S. Evilazio com um cruzado de esquerda pra deslocar o maxilar daquele velho fodido, depois algumas ceninhas rápidas como entrar no apartamento dele e cagar bem no meio da sala de estar, quem sabe atirar merda na esposa dele caso ela aparecesse. Dizendo algo maluco do tipo “Olá D. Marta, belo dia pra dar uma cagada bem no meio da sua sala não?”. De qualquer maneira quando despertei dessa alucinação (tão doentia que me fez rir um pouco alto demais), notei que já tava no térreo e a caminho da parada de ônibus, pronto pra enfrentar a massa de podridão que iria me devorar assim que eu botasse o pé pra fora do prédio. A parada tava lotada, o que me fez imaginar que dia da semana seria, esperava que fosse quarta, sempre há alguma coisa acontecendo nas quartas, pensei em pra quem eu ligaria quando aquele pesadelo tivesse terminado. Talvez pra Juliana, ela sempre tinha algo de novo e interessante que me mantinha distraído o suficiente pra não bater com a cabeça na parede até que ela explodisse, algo como um filme realmente demente ou algum vídeo mal gravado da ultima festa de rock da galera, algo assim, quem sabe algum poema novo ou conto que ela tenha escrito. Na verdade eu só queria ir pra casa e dormir, soava como um plano fantástico, se eu não estivesse no meio de uma crise de insônia é claro. Quando me dei conta ao despertar dessa nova fantasia tava já quase na parada em que deveria descer. Era num shopping um tanto afastado do centro, havia passado por ali alguns dias atrás, antes nem mesmo sabia que havia uma livraria ali (não sou muito fã de shoppings), de qualquer maneira desci imediatamente, nem reparei nas pessoas sentadas no ônibus, certamente haveria alguém repulsivo o suficiente para extrair parágrafos de lirismos decadentes, sempre há alguém suficientemente repulsivo dentro de um ônibus. Da rua tentei encontrar quem seria a criatura vencedora, o mais promissor que consegui encontrar olhando de relance foi o cobrador de meia idade, careca, gordo e com a unha do dedinho comprida, era um espetáculo, se o ônibus não disparasse tão imediatamente, poderia desmembrá-lo em pequenos pedaços e saborear cada parte podre ou ridícula em que pudesse por meus olhos, deixando meu desprezo escorrer por sua careca lustrosa, por cima da sua barriga flácida e tudo mais. Quando despertei desse novo sonho percebi que eu tava na parada já a quase 5 minutos, parado, estático, olhando para onde fora o ônibus, chacoalhei a cabeça pra ter certeza de que não iria cair no sono ali mesmo e fui indo em direção a livraria. Quando entrei vi uma prateleira com volumes de bolso e dei uma rápida olhada pra ver se encontrava algo de meu gosto. Tentei sondar o lugar antes de me aproximar de qualquer atendente. Era uma livraria imensa, com um ar industrial, gélido e estéril. Avistei uma senhora mais velha usando roupas bem sóbrias e com um crachá diferenciado, já sabia com quem falar, mas antes me aproximei de um dos vendedores, era um cara um pouco mais baixo que eu com um daqueles olhares estúpidos no rosto, parecia-me que ia começar a babar a qualquer instante, mas não começou, me olhou e me cumprimentou como se eu fosse um freguês, com aquele aparelho ortodôntico brilhante na boca amarela, repulsivo como só o bicho humano consegue ser. Perguntei a ele em que prateleira poderia encontrar alguma coisa da geração “Beat”. Ele me olhou com ar estúpido e perguntou “Beatles?”. Eu ignorei a resposta e perguntei se eles tinham algo de “Les decadent”, comecei a lançar nomes a esmo pra deixar ele maluquinho, “Le peintre de la vie moderne, Une saison em enfer”, ele ia ficando tão confuso que começou a ficar vermelho e foi pra trás de um computador pra pesquisar os títulos que eu falava sem parar. Eu estava deliciado por poder humilhar aquele coitado e fazer da manhã dele um inferno, mas logo me cansei e ele também e acabei pedindo pra falar com a gerente, ele ficou desconfiadíssimo, pensou que eu ia reclamar dele ou algo assim, mas tranqüilizei o imbecil dizendo que só queria entregar um currículo e nada mais. A mulher me recebeu muito bem, quase não conversamos, falei que tinha interesse em trabalhar com eles e ela deu uma olhadela rápida no meu currículo dizendo que me ligaria assim que algo surgisse. Pelo olhar esquivo dela e o tom da voz cheguei a conclusão de que ela jamais me chamaria, pelo menos não nessa encarnação, e quanto a próxima tenho planos de voltar como qualquer animal irracional, por que convenhamos, as coisas são bem menos complicadas, embora com a minha sorte certamente vá acabar na parede de algum caçador alucinado ou virar sabão em um canil. Enfim parti para a segunda livraria, que era do outro lado da cidade, e dessa vez saboreei o ônibus como nunca, o calor estava insuportável, e eu naquelas roupas apertadas de procurar emprego só queria tirar os sapatos e dormir ali mesmo. Uma senhora muito gorda sentou do meu lado, suava como uma porca. Era horrível, após algum tempo comecei a resmungar algumas coisas sem sentido como um lunático pra ver se ela se assustava e levantava ou pelo menos se afastava um pouco de mim, mas, simplesmente, não havia espaço o suficiente! Depois de uns quinze minutos resmungando blasfêmias decidi desistir, até por que o tom de voz excessivamente baixo em que eu falava e os três bilhões de cigarros que já havia fumado estavam irritando pra cacete a minha garganta. Algumas paradas depois decidi me levantar, ou chegaria ensopado na próxima loja, além do que, a velha gorda começou a cheirar esquisito depois de algum tempo no sol. Fiquei com medo que de dentro daquela banha toda emergisse um bebe assassino faminto por gordura, ou algo vindo do espaço, mas graças a Deus nada saiu de dentro daquele receptáculo cornucopial de fast-food. Quando acordei desta outra fantasia já havia passado da minha parada, teria que andar um bom pedaço de volta até a outra livraria, mas nem me importei só queria mesmo era dar o fora do maldito ônibus. Fui caminhando bem devagar e acendi outro cigarro no caminho pra ver se eu parava de tremer como um alcoólatra em reabilitação. Essa livraria era mais provinciana, tinha um pouco mais de alma, o que me deixou bastante contente. Era minúscula com apenas dois atendentes, decidi fazer uma pequena cena, e comecei a mesma baboseira que já tinha feito com o guri imbecil da primeira loja, perguntei sobre isso e aquilo, mas não dei sorte, o filho da puta conhecia todos os escritores que mencionei, botei na mesa até os autores mais obscuros de quem gosto como Lord Byron, Burroughs, e toda essa velharia esquisita que quase ninguém lê hoje em dia, o divertido foi quando ele começou a jogar comigo e me perguntar sobre autores que quase ninguém lê relacionados a estes que eu já havia mencionado, e convenhamos, ele tinha uma biblioteca a sua disposição enquanto eu era um mero amante de livros com uma paixão esquizofrênica por obscuridade, ele acabou citando uns filhos da puta de quem eu nunca ouvira falar e eu terminei por desviar o assunto pra dentro da filosofia que é um campo ainda mais fodido, sei que decidi desistir quando ele começou a comparar comigo a doutrina das cores de Goethe com as teorias elaboradissimas de Newton. Fui derrotado, mas, e daí? Não se pode vencer todas. Me deu uma puta vontade de apertar a mão do cara, mas eu me contive por que ia parecer meio retardado da minha parte, então só entreguei pra ele um currículo e ele sorriu meio complacente como quem diz “achava que eu era bobo né?”. O sujeito foi bem bacana, bacana mesmo. Mas desde o momento em que entrei na livraria já tive a sensação de que não me contratariam, duas pessoas era mais do que o suficiente, ao menos foi o que me pareceu a principio. Saí dali determinado a jamais entrar num ônibus novamente. Atravessei a redenção aproveitando o sol da manhã e procurando algum lugar pra pegar um expresso ou qualquer outra coisa que me mantivesse acordado por mais algumas horas. Parei num boteco aleatório e pedi uma taça de café sem leite ou açúcar e sentei por um instante acendendo ainda mais um cigarro. Não que eu estivesse com vontade de fumar ou qualquer coisa do gênero, num dia normal fumo uma carteira de cigarros, talvez menos, mas é que naquele instante em particular eu simplesmente precisava de algo pra fazer com as minhas mãos. O café demorou o que me pareceu uma eternidade para chegar. Não reclamei nem nada, imaginei que a minha cara de cu já era desconfortável o suficiente para o rapaz me servindo e tenho uma paranóia de que quando esses caras não gostam de ti, cospem e fazem todo o tipo de nojeira com o que quer que estejam te servindo. Me demorei tomando aquele café, começava a sentir uma dor de cabeça terrível provavelmente por fumar tantos cigarros e tomar tanto café, me sentia todo fodido, como um leproso ou algo assim. Percorri mentalmente o trajeto que ainda teria de fazer antes do almoço e calculei quanto dinheiro me sobraria para comer. Percebi então que estava tomando meu almoço naquele instante, e com isso me senti mais fodido ainda. Nem cheguei a terminar o café por que sentia como se fosse vomitar a qualquer momento, simplesmente paguei o guri e fui embora com uma bituca de cigarro na boca. Atravessei a redenção rumo a cidade baixa em busca da ultima livraria que visitaria naquela manhã, a essa altura já estava tão exausto que todos os pensamentos que me ocorriam vinham como uma massa disforme de idéias abstratas e palavras soltas. Quase nem notei quando cheguei a livraria, onde também haviam apenas dois atendentes, estava tão desmotivado a essas horas que simplesmente deixei o currículo com um deles sem falar quase nada. Duvidei que fossem me chamar de qualquer forma.
Pela hora do almoço quando retornava pra casa, meu celular tocou, pensei que podia ser alguma entrevista e me animei por um instante até ver no visor o nome de uma amiga, estava quase caindo morto, mas pensei que poderia pelo menos descolar algo pra comer então atendi fingindo animação. Ela falou bem rápido, me convidou pra ir a casa dela, que ficava no caminho da minha, dizia que estava sozinha e tinha um monte de cerveja, tanta cerveja que nem sabia o que fazer, estava quase enfiando as latas no cu. Fiquei em silencio por um instante imaginando a cena e em seguida para salvar a cerveja do destino terrível que a esperava decidi atender ao convite, disse que chegaria em cerca de 20 minutos. Peguei novamente o ônibus, num estado que é difícil descrever, me sentia envolto numa espécie de nuvem paralitica. Uma nuvem intransponível que nada conseguia perturbar. Iria cair no sono a qualquer segundo, conseguia sentir, meus olhos começavam a fechar enquanto eu lutava para mantê-los abertos, decidi me levantar para evitar cair no sono e não acordar até estar em Budapeste ou no Sião. A casa dela era bem em frente a parada, quando comecei a me aproximar telefonei para que abrisse a porta assim que eu chegasse. Ela já me esperava com a porta aberta e uma cerveja na mão quando finalmente saí do ônibus. Fui entrando e perguntei como quem não quer nada se tinha algo de comer, ao que ela prontamente respondeu que não, e eu resignado comecei a beber e a falar freneticamente, dando ênfase a cada detalhe enfadonho da minha aventura matinal. Conforme fomos bebendo e conversando, minhas energias pareceram retornar aos poucos, como se me houvessem aplicado uma injeção de adrenalina ou algo assim, em poucos instantes estava elétrico novamente, começamos a discutir poemas, ela me mostrou algumas coisas novas, dentre elas um exemplar de “O perfume” de Patrick Süskind, e um volume de Contos de Caio Fernando Abreu. Enquanto a conversa se desenrolava, as latas vazias de cerveja se amontoavam ao nosso redor. Eu já estava bem bêbado lá pela quinta ou sexta lata, mas simplesmente não conseguia pensar em um motivo bom o suficiente pra não continuar bebendo. Fiquei imaginando como seria engraçado entregar currículos bêbado, fiquei imaginando umas cenas meio Bukowski, como entrar nas livrarias pegar um volume de Sheakspeare e começar a recitar Ofélia ou Rei Lear aos prantos, como naqueles exageros hollywoodianos, e depois é claro dar uma mijada bem no meio da prateleira de poetas ingleses, entregar o currículo com um sorriso cordial e ir embora escoltado pela policia. Decididamente me contratariam. Ao menos eu contrataria um cara com coragem pra fazer isso tudo. Não consigo me lembrar o momento exato, lembro que foi no meio de uma conversa pausada, enquanto tocava alguma coisa de Pink Floyd ao fundo, que meus olhos se fecharam, e por pelo menos 18 horas não tornaram a se abrir.

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