quinta-feira, 29 de julho de 2010

Ornitorrinco Zen

Estendido sobre a cama
Um universo de resoluções apocalipticas
Se espalha por todo o tecido áspero
Macro cosmos de infinitas possibilidades
O cerebro queima como fogueira
Explodindo mil idéias fúteis
No caminho da verdade velada
Escondida nas luas distantes do subconsciente
Inerte, se deixa mesclar ao ambiente
Reconhecendo as deixas e contratos tácitos
Secretos e tão óbvios
Dentro dos companheiros de quarto
Camaleão tecnicolor
Cuspindo farpas nos jalecos higienizados
Olhando ao redor: porta, janela e sacada
Perdido no labirinto do Fauno
À espera do inesperado, inevitavel
Crisalida de espelhos
Análise pontiaguda dos nichos internos
Rasgando pele e osso
Na busca da palavra que liberta
Titã gentis, fragil como o exoesqueleto
Da mais leve borboleta
Tão leve, flutua de si
Nas páginas de um livro
Nos jardins da memória
Afundando entre peixes carnivoros
...
(A um verme)

sexta-feira, 16 de julho de 2010

Lexotan 6mg

Gato preto e branco
Andando pela casa inteira
Quase sem quebrar nada
Aniquilando os intrusos
Os fiosinhos sedutores
E do nada tu me acorda
As cinco da madrugada
Come essa porra de salsicha
Para de comer meus livros;
canetas; cartas; fotos; convidados
Fascinada pela caixinha fedida
E ronrona, e se roça
E senta na minha cara
Só não franze o cenho nem nada
...
(para Joy a gata e o amigo farmaceutico)

Mães de escorpião

E bate os pés pela casa
Rugindo feito um trovão
E conta todo o dinheiro
E pega o recibo na mão
Eu fico esperando passar a ventania
De qualquer forma
Pouco resolveria
Chorar de raiva ou gritar de volta
E, se demora um pouco
Tentando arrancar sangue
- Tu não vai ser nada na vida
Mas depois que a gente ouve isso
Com uma certa frequencia
Se torna questão de paciencia
Como lidar com uma cabrita enraivecida
...
(para Daniela Weber)

Virgin Suicides

Cleopatra deitada
Seu firme rabo, aponta a janela,
Suas meias molhadas
revelam o apuro dela
E os cabeludos contracenam como extras
Um ensaio inexato,
Exaspera-se: -Em Caxias ta cheio de macho
Mas que bagunça
Ta tudo desorganizado
E meu Deus, minhas lentes de contato
Gente, que vinho ruim
Não. Não querido, tu ta errado
E eu bebo, e rio, e falo o Diabo
Só pra chorar longe do meu quarto
Por que né, é bom variar o ambiente
...
(para Jessie Gabriela)

quarta-feira, 14 de julho de 2010

O porteiro do plaza

Destruiram a métrica
Em algum lugar
Um velhinho soturno se vangloria
De ter matado toda a poesia
Não vende, ninguém lê
Ninguém se importa
É bacana de se ter num diario
Mas e daí né
Sou o porteiro do plaza
Que escreve poemas sujos
Sobre gente rica
Que entra e sai o tempo todo
...
(para Kauan Negri)

segunda-feira, 12 de julho de 2010

Capital

Meu porto de águas turvas
Tão distante de outros portos
Teu sol, que é só teu aos domingos
Teus pedintes orgulhosos
Teus poetas bebados e maltrapilhos
As praças pesadas e cheias de histórias
Deserto de asfalto nas madrugadas
Luzes sinuosas, janelas iluminadas
Esse céu pesado, chumbo e aço do outono
De quando em quando se abre
E banha de azul e dourado
Teu rio, que é mar e tempestade
Nas noites longas de suplício
Dor e delícia enclausurada
Solidão pre-planejada
Apartametos tão cheios de vazio
Meu porto de águas turvas
Meu triste porto
...

Rompimento

Me perco nos olhos vagos
Dos bebados atirados pelos quartos,
Uns sobre os outros,
Uma grande célula libertária,
Flanando no plasma atemporal,
Sintético e áspero que compõe a noite,
Unica e indivisivel,
Cheia de cenas "noir", nuances,
Memórias, cigarros.
Eu me perco dentro de mim
E te encontro. Esqueço o que eu sou,
E o que tu deixa de ser quando
Por uma palavra
Tudo desaba.
Bebo eu, bebe tu.
Quero de volta cada silencio
...
(para Henrique Wopala)

domingo, 20 de junho de 2010

Água Oxigenada

São tres cores distintas
Um rapaz muito simpatico
Definitivamente simpatico
Simpatético e cheio de pele,
Ossos, unhas, dentes, pelos,
Roupas e idéias, idéias simpaticas
Olhando e pensando: "daonde
diabos saiu esse cara cheio de
frases de impacto bem encaixadas
entre os hiatos." E eu olho pra
Ele e penso: "nada."
Cazuza seria bem mais enfatico,
Definitivamente mais piegas e
Mais simpatico. Simpatético.
A água oxignada borbulha agora
Sobre os cortes que eu fiz noite passada
Eu olho e penso: "estúpido."
E acendo um cigarro.
...

Três cores distintas

Eu não sei pra que serve
Nem de onde vem
Nem pra onde vai
Schoppenhauer também não sabia
É qualquer espécie de entidade onipotente
Que existe simplesmente
É matéria negra, uma coisa muito louca
Ninguém nunca viu
Um astro maluco que fica lá
Existindo sem dar bola pra nada
Todo mundo sabe que ta lá
Tem gente que não entende muito bem
Mas não da pra culpar essa gente
O conceito todo é mesmo muito abstrato
E inutil, infinitamente inutil
Tem gente que se diz influenciar
Por essa coisa, que ta lá
E eu digo "lá", simplesmente,
Por que ela não ta aqui nem nada
Ou talvez até esteja
Vai saber
É um grande mistério
Eu nunca vi também
pra falar bem a verdade
Nem sei mesmo se ela ta "lá"
Se não estiver também
Pouco importa
Por qualquer motivo estúpido
Eu prefiro pensar que ela ta lá
E vai ficar lá não importa o que aconteça.
E são tres cores distintas
Como a bandeira da Alemanha
Simples assim
...

sexta-feira, 4 de junho de 2010

Tormenta

Queimei as fotos
Arranquei as portas
Rasguei as roupas
Matei os cães
Acendi um cigarro
Sentado no telhado
Calculando o angulo perfeito
Pra partir meu crânio em mil pedaços
...

quinta-feira, 15 de abril de 2010

Fenix de couro

São promessas partidas
O peito arfando em agonia
Falta de ar fatalmente planejada
Miasmas e monstros cirurgicos
Dançando sob um céu pesado
Cravejado de anjos caídos
Em tons de cinza e laranja metalico
Armas apontadas, barricadas
Barreiras intransponiveis
Trespassadas por palavras
O circo retorna a cidade
Com os arlequins doentes
Soprando fogo pelas narinas
É a idade do ouro e da prata
De novo e de novo, retorno ao nada
A velhice é um fantasma, cheio de dedos e traumas
Não tem idade e ataca pelas costas
É um vulto escuro de fumaça
E morro pouco a pouco
Por vontade e necessidade
Pra sentir a vida se esvair
Num corrego de pixe negro
Que me brota dos punhos
E minha conciencia navega ilesa
Aqueronte devora minha carne
Duas moedas de cobre
Duas pilulas brancas de alegria
Paraísos artificiais estáticos
Enterraram o demonio do tormento numa cova rasa
E ele retorna a superficie gargalhando e batendo as asas
Com a vóz do trovão e a carne lascerada
Ele ama a dor alheia e dela se alimenta
E cospe palavras ácidas e silencios afiados como navalha
...

quinta-feira, 25 de março de 2010

Um futuro sem quimeras

Eu me sentei em frente a ela, ficamos em silencio um minuto
simplesmente olhando um pro outro, em meio a fumaça branca do café
ela quebrou o silencio com o riscar de um fósforo, tragando o cigarro.
Eu tinha parado de fumar há tempo, mas pedi um cigarro,
lembrei subtamente da mesma cena se passando a alguns anos atrás,
quando eu era só um guri amargo e cheio de sonhos inexcrutáveis
e ela uma mulher madura reconstruindo uma vida cheia de tropeços.
Ascendi e senti a fumaça abrindo velhos caminhos, ativando velhas sinapses.
Café quente pra lavar o gosto do tabaco. Ela falou afinal, e eu falei em seguida,
começamos ambos a falar de coisas remotas
e a rir de coração aberto como nunca antes.
Era uma amizade sincera e cheia de sinceridades. Ela não se casara de novo,
e eu nunca me rendera a arapuca, ela andava pesquisando uns textos antiquissimos,
lemos alguns juntos, algum poeta francês, não recordo o nome naturalmente,
ele não era o assunto, nós eramos o assunto. Ela me falou do meu livro, e eu do dela,
jogamos tarot, e quando me dei conta já passavam das quatro da manhã.
Fomos para a cobertura, eu ascendi um baseado
guardado herméticamente para a ocasião,
falamos de amores, falei que tinha conhecido um cara em Viena,
que fizemos amor e que jamais tornariamos a nos ver, como mágica.
Ela me falou que estava em fase de grandes descobertas
com um homem gentil e inteligente,
que não pensavam em se casar ou morar juntos, e que se amavam incondicionalmente.
Ela me falou que o filho já cursava a faculdade, que era um rapaz feliz e bem sucedido,
e que estava perdidamente apaixonado pelos livros,
e por uma moça um pouco mais velha,
numa ordem oscilante de intensidades.
O sol começava a apontar seus chifres dourados no horizonte,
e eu partiria novamente dentro de poucas horas.
E eu não partiria de alma leve sem saber que, por aqui o sol também nasceu.
Sem ter a esperança de que toda aquela
briga do passado tivesse dado frutos para o presente
e que mesmo aqueles amigos que se perderam no caminho
tenham encontrado um futuro sem quimeras.
...


;) Dani chan

quinta-feira, 18 de março de 2010

Meus Amores

Meus amores, a meus amores
Essa fumaça azulada que cruza o quarto
E a luz do sol que atravessa a vidraça
Como um feixe metalico e dourado
Eu deito estático em reverencia a teu corpo deitado
Meu copo cheio, meus olhos vagos
Traçando uma linha em algum lugar inalcançavel
Tu dorme, eu mergulho
E o som da tua respiração é música sem compaço
Um sonho que te tira do mundo
Bebo um gole, ele desce e arde
Transpiro a fumaça
Silencio precede o silencio
Estou só, só com meus amores
Quando tu acordar, já terão ido embora,
Como amantes na madrugada
...

segunda-feira, 15 de março de 2010

Lista

Vou contar até três
desaparecer por um ano
olhar tudo de longe
observar as nuances se formando
os casais se separando por irrelevancias
as traições e as brigas de rua
vou ver como se grita com quem se ama
descobrir o motivo por traz de todo e qualquer suicidio
fazer uma lista cheia de observações vorazes
precisas e inuteis
pra entender o sentido por traz de toda insensatez
catalogar catedraticamente todos os enganos
voltar são dessa jornada insana
fazer tudo dar certo, pelo menos uma vez
Fogos de artificio, voando como relampago
mil cores distantes explodindo
...

sábado, 13 de março de 2010

Homeopatia emocional

Tu é o extremo da bondade
eu as vezes me sinto
como um intruso em ti
por que sou grande e desajeitado
fico me batendo nas quinas da vida
e tu me entende, e me quer bem
mesmo eu sendo uma pilha de más escolhas
eu me esforço pra ser bom
e pra deixar tudo aquilo
aquele lixo acumulado por anos
numa gaveta bem fechada
escondida em algum lugar
e eu te vejo confiar em mim
com teus olhos enormes e transparentes
sinto até medo de te deixar triste
por que é isso que eu faço
deixar todo mundo triste
mas quem sabe tu não me ensina
a fazer de um jeito diferente
quem sabe tu me cura de todo esse cinismo
que o mundo me enfiou garganta a baixo
quem sabe bem devagar
uma dose por dia dessa bondade desmedida
não cura aos poucos essa chaga
que se recusa a fechar
...
(Ao amigo Luiz Massamiti)

Distímia

tem coisas a teu respeito que eu ignoro
eu tento sempre te tratar da melhor maneira possivel
e as vezes quando me escapa um grito
e tu fica acoado e triste de verdade
eu me sinto fraco, doente
e essa é a sintese do que eu sou
doença, demasiado humano
eu gosto de estar contigo
as vezes penso que ta tudo ao contrario
e quase deixo tudo de lado
eu vou sabotando aos poucos
essa sensação boa e simples
não tem muito o que fazer
eu vou esperar até que
esse gorfo de bestialidade
exploda bem em cima do teu rosto
e esquecer que só te olhar bem de perto
faz tudo parecer tão certo
e que meu mundo quebra quando tu soluça
vou esquecer de como é te apertar bem forte
e fazer todo esse tempo não ter significado nada

...

quinta-feira, 11 de março de 2010

Intermitencias da morte

Eu recuo nessa nevoa cinzenta
e o céu é breu e micropontos de luz imaginaria
é o passado, e agora que retorno
nada me parece muito importante
dessa massa desconjunta e sem cor que é a vida, a minha vida
não consigo extrair uma onça de sentido
sequer aprendi com meus erros
levo só uma vaga sensação de ter deixado algo incompleto.
E só, mais nada
Olhei as fotografias todas, uma a uma
quase uma centena delas e não vi nada.
todos esses amigos, tantos e sempre tão essenciais
por terem sido parte daquilo
aqueles olhos que eu olhava com carinho
agora são só sorrisos congelados
num papel plastificado
micropontos imaginarios de luz
sei que toda a vez que os olhar vão estar ali
Prossigo por uma estrada lodosa e escorregadia
ainda recuo, então não prossigo
retrocedo e faço mesuras para os vultos
eles não tem rosto, estão todos calados
negros como fumaça, estranhos e esquivos
não posso toca-los, e eles não podem tocar-me tampouco
o que me é permitido é dar-lhes nomes
citar lugares, mas vão permanecer o que são,
com nomes e em lugares, em algum lugar da minha memória
"quem me é caro esta morto", penso.
E imagino, não fossem as fotografias
esse limbo interno pulsante e escuro
seria composto de vacuo e vazio e do nada
e eu não teria nomes ou lugares para dar aos meus vultos
e eles seriam também vacuo e vazio e nada
eu deito só e minha consciencia escapa
a racionalidade não é a mesma, não é tão apurada
é fraca e indolente, dobravel, mutavel
eu vejo um homem sentado ao pé da minha cama
ele me põe moedas nos olhos, e chora baixinho
e eu sigo. Retrocedo... alguém me acompanha.
...

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Máximas inegaveis (conto)

Quando acordei era por volta de umas duas horas da tarde, não lembro com exatidão, me sentia ainda meio bêbado da noite passada, decidi nem sair de casa até o sol baixar. Fiquei curando o porre. Tinha todo um ritual que era quase infalível, consistia em tomar banho, escovar os dentes, tomar um daqueles energéticos que os atletas tomam, pra repor meus eletrólitos e toda aquela merda e comer alguma coisa bem leve. Pronto, estava novo. Até cumprir todas as etapas do esquema passaram-se umas cinco, talvez seis horas, a noite já vinha caindo. Um amigo ligou e disse que tinha combinado com o nosso tecladista de fazer uma noite no apartamento dele, como eu não tinha idéia melhor e já a algumas semanas não conseguia falar com o pessoal da banda, topei na hora. Fiquei esperando ele e combinando com um outro amigo de tomar umas cervejas no nosso boteco de praxe na João Alfredo, o Eletric lady land.
Dois detalhes que talvez sejam de interesse do leitor: primeiro, ninguém tinha um tostão no bolso. Segundo, era uma daquelas noites que cheiram a coisa louca. O clima tava perfeito pra se sair na noite, a exata temperatura em que não se sente frio tomando cerveja ridiculamente gelada. Enquanto falava com o Mario pela internet, o interfone começou a tocar, interrompi a conversa e fui abrir o portão pro Felipe, o baixista da banda que já tinha chegado.

- E ai cara – ele falou enquanto já tirava o paletó e ia até a geladeira.

- E ai. – respondi enquanto já voltava pra frente do PC e terminava de combinar os detalhes com Mario. Ele voltou com duas long necks que tinham sobrado da madrugada passada, e me entregou uma aberta enquanto abria a dele.

- Tem algo de grana meu? – ele perguntou rindo de si mesmo.

- Nem pro crivo. – respondi rindo também.

- O Téo falou que também ta duro. – ele comentou ainda rindo.

- Ta, e a noite? – eu perguntei, sem nem pensar muito em grana.

- O plano é ir pro AP lá. – ele respondeu, encerrando a frase com um longo gole de cerveja, procurou pelos cigarros nos bolsos, acendeu um parando atrás de mim e encarando a tela luminosa do PC.

- Certo, só deixa eu trocar de roupa. – falei já me levantando. Ele tomou meu lugar enquanto eu trocava de roupa e ia apagando as luzes da casa.

- Me da um cigarro ai! Bah! Nem me lembrei! – falei voltando pra perto do computador. Ele estendeu o cigarro pra mim, abrindo a carteira com pouco mais de meia dúzia dentro. “Carlton Red” a quem interessar possa. Fui catando minhas coisas que sempre estão nos lugares mais estapafúrdios possíveis e imagináveis, chaves, carteira (não que houvesse algum dentro mas, enfim) e por fim, meia garrafa de vodka que tinha sobrevivido ao inicio do fim de semana. Taquei a garrafa na mochila e fui indo até a porta.
- Desliga tudo duma vez! – falei impaciente.

- Calma, to desligando... – voltei e chutei o interruptor no estabilizador.
- A ta. – ele disse rindo um pouco, mas só de leve, nada grave.
Fomos descendo os andares e conversando qualquer coisa que não consigo me lembrar agora, e muito provavelmente jamais lembre. Alcançamos o portão de saída, toquei no botão ao lado da parede enquanto ele abria a grade.
- bzzzzzzzzzzzzzz – falou o portão com um leve grunhido de cansaço. Provavelmente de ficar o dia todo sendo manuseado pelo bando de imbecis que me servem de vizinhos. De qualquer maneira descemos a quadra até chegar na rua da Casa de Cultura Mario Quintana e fomos andando rumo a cidade baixa. Atravessamos o centro tomando uns goles curtos de vodka e fumando aqueles cigarros de bicha do Felipe. Chegamos a independência e passamos pelo Bambus que estava ás moscas, exceto por um pequeno grupo de vagabundos, menores de idade, viciados em qualquer coisa que não dou a mínima pra o que venha a ser, seguimos andando e conversando, sem caminhar muito rápido por que também era muito cedo e estávamos um tanto quanto sem rumo até pelo menos uma meia-noite. Tentamos ligar pro Téo, mas o celular só tocava e não atendia nunca, devemos ter tentado um bilhão de milhões de vezes, até encher o saco MESMO de ouvir aquela mulhérsinha que fica te mandando deixar um recado que ninguém escuta (exceto viciados em anfetamina com tempo demais nas mãos) após o bip. “biiiiiiiiip”. Começamos a ligar pra todo mundo que poderia por ventura ter o número do convencional e enquanto isso íamos bebendo vodka bem aos pouquinhos só pra dizer que estávamos bebendo alguma coisa, e fumando aqueles cigarros de bicha que a essa altura já estavam quase acabando. Paramos naquela praça na frente da igreja que fica bem no meio da AV. Independência, decididos a conseguir contato com Téo, ligamos pra todo mundo que conhecia ele, ligamos pra mãe dele, pro pai, pras tias, pra madrinha de casamento, pra puta que o pariu, e nada de conseguir o maldito número, os créditos já estavam pela hora da morte e a gente cansado de ouvir tantos “não sei mesmo”. Decidimos ir á casa do avô do Felipe pra usar o telefone e guardar o restante dos créditos pra uma emergência ou qualquer troço do gênero. Caminhamos até a Av. João Pessoa e atravessamos rumo a José do Patrocínio, indo reto pela República, dobrando e caminhando até quase a Perimetral, uma puta caminhada. Quando chegamos aos últimos dois cigarros o Felipe falou:

- Cara, vamos guardar esses pra quando a gente sentar ou algo assim – e eu concordei com a cabeça por que além do cigarro não ser meu, já tínhamos fumado quase a carteira toda e a noite ainda ia ser comprida.

Entramos de fininho na casa do avô dele, que não tinha pátio, nem cachorro, ele tinha as chaves, o telefone ficava logo no primeiro cômodo e o velho dormia como uma morsa, dava pra ouvir os roncos nitidamente, mesmo estando um tanto longe, diabos... acho que se eu me concentrasse a noite conseguiria ouvir lá da minha cama no meu JK fodido. Eu fui sentando do lado do telefone enquanto Felipe ia na cozinha sorrateiramente, tentando roubar algo de beber da geladeira sem acordar a morsa maluca. O avô do Felipe era um cara muito excêntrico, daqueles velhos bem caducos mesmo, dormia com um 22 do tempo do Zorro embaixo do travesseiro e era cego como uma toupeira, dizem que volta e meia apontava pra qualquer pessoa passando pela casa e falava algo doido do tipo: “IDENTIFIQUE-SE OU ATIRO”. Comigo nunca tinha acontecido e olha que eu freqüentava bastante a casa do velho, normalmente assim, às escuras, com ele dormindo e roncando que nem uma morsa. Bom de qualquer maneira, tentei ligar mais umas vezes pro Téo e nada do filho da puta atender, já tava quase arrancando os cabelos de ódio, fico muito irado quando não atendem telefone, me sinto até meio ofendido, e as vezes nem é culpa do cara, mas eu sou meio louco e como sempre esqueço assim que arranjo algo melhor pra fazer, não faz a menor diferença. Felipe voltou com uma carteira novinha de cigarros que o pai dele tinha esquecido por ali, e a terça parte d’uma garrafa de vinho do porto que tava na geladeira a uns 3 meses quase.

- E ai? Nada? – ele perguntou acendendo o penúltimo dos cigarros dele, e me atirando o outro no colo.

- Nadinha. – respondi com a voz em algum lugar entre o desanimo e a irritação.

- Bom. Foda-se! Ele que vá pro diabo! A gente faz a noite mesmo assim, vamo passa no trabalho do Rodrigo, e convida ele pra ir junto pro boteco – ele falou bastante irritado enquanto já ia saindo, saí na frente e fiquei fumando enquanto ele chaveava a porta. Demos um passo em direção ao portão e o telefone começou a tocar loucamente! Felipe pensou rápido e tascou a chave na porta o mais depressa que pode!
- Riiiiing! Riiiiing! Riiiiing! – berrava o telefone nos ouvidos do mamute adormecido! Um segundo antes de Felipe conseguir atender, o telefone parou de tocar, eu entrei junto pra ver se o velho tinha acordado ou algo assim. Felipe falava ao telefone, com a voz mais macia que conseguira desenterrar na hora, parecia até uma cantiga:

- Já atendi vô... Sim é pra mim vô... Não vô. Não to dormindo aqui... Onze e meia vô... To bem sim vô... Boa noite vô – a essa altura eu já estava me mijando de rir, então saí pra não fazer muito barulho e acabei perdendo o resto da conversa. Ele saiu em seguida rindo também, mas sem fazer barulho.

- Bah! Que cômico, o vô tava tri afim de conversa... – ele falou enquanto girava de novo a chave e trancava a porta.

- Era o Téo? – perguntei indo já para o portão e pegando o cadeado.

- Era sim, ele falou que fumou uma bomba e acabou pegando no sono, mas já ta vindo nos pegar em uma meia hora. Que tu acha de a gente ir buscar o Rodrigo? – ele falou já tomando o rumo da Venâncio e eu concordei só chacoalhando a cabeça e fazendo um sinal com a mão pra ele passar o vinho.

Fomos tomando vinho e caminhando meio rápido até a Venâncio onde o Rodrigo trabalhava, ele era cozinheiro num restaurante bacana pertinho do Bar do Beto. Quando chegamos fomos cumprimentando toda a equipe do bar e pedimos pro Jader, o dono mandar uma cervejinha e anotar na conta, fomos até a cozinha e o Rodrigo já tava lavando os troços quase pronto pra sair.

- E ai meu! – Falou Felipe, se escorando no balcão onde faziam os pedidos. Rodrigo só olhou com cara de bravo e continuou fazendo o que tinha que fazer. Se tem um cara que é mau-humorado, esse cara é o Rodrigo, ele sempre da mil voltas quando a gente pede alguma coisa, principalmente quando o assunto é cozinhar, sem falar no monte de frescura! A gente inclusive brinca que pra ele cozinhar qualquer coisa com creme de leite só se ele mesmo ordenhar a vaca holandesa e bater o creme, e ainda se corre o risco de ele se lembrar de algum detalhe mínimo do tipo: “A! mas essa vaca não é de uma boa safra!” e jogar o troço todo fora cheio de desdém. Mas o ponto positivo disso é que, tudo o que ele faz ou tem, é da melhor e mais incontestável qualidade.

- E ai meu, que horas tu sai hoje? – Perguntei me aproximando também do balcão.

- Daqui a pouco. – Falou ele emburrado.

- Ta! A gente te espera ali fora então. Botamos uma cevinha na tua conta, ok? – disse Felipe com uma cara de deboche que só ele sabe fazer, ao que Rodrigo nem sequer respondeu só ficou ali lavando mil utensílios de cozinha, daqueles que um pobre mortal não faz nem idéia de que existem, e se souber também não faz idéia de como usar.

Sentamos num balcão e fizemos sinal pro Jader trazer a bendita cerveja, não ficamos ali tempo o suficiente pra terminá-la, Rodrigo veio já despido dos uniformes e usando a sua infame gandola e nos ajudou na árdua tarefa de tomar aquela geladíssima antártica original, a quem interessar possa. Ficamos de papo pro ar uns minutinhos terminando aquela cerveja e meu celular tocou, era o número do Mario, Atendi e falei pra ele ir até a esquina da Venâncio com a João pessoa e seguimos todos pro rondevous de praxe. O postinho da Venâncio. Rodrigo no caminho sacou de um tijolo de maconha quase do tamanho d’um punho! E começou a esmurrugar enquanto caminhávamos.

- Caras, acho que não vou mais pra Sampa... – falou ele inconclusivo

- Que houve cara? – perguntamos em coro.

- Bom, primeiro que acabei gastando mais do que devia e to meio com medo de passar necessidade lá e ter que voltar com o rabo entre as pernas – puxou a carteira com uma mão e me deu – pega a ceda – peguei uma e dei pra ele, Pure Hemp, a quem interessar possa. Ele continuou:

- E também me fizeram uma proposta... – falou de novo, sempre deixando lacunas, um hábito que deixava todo mundo louco quando ele contava uma história, na verdade acho que ele esquecia de completar as frases e afirmações, passava o dia todo fumando maconha, pra acordar, pra dormir, pra cagar, comer, tirar o lixo, bater punheta, e qualquer outra sorte de tarefa que se possa imaginar.

- Que proposta? – Perguntou Felipe. Eu fiquei quieto ouvindo um tanto distraído.

- Uma guria que eu namorei a muito tempo disse que vai abrir um bistrô pela cidade baixa, e me falou que ta procurando um sócio. Como eu tenho alguma grana guardada, acho que pode ser um bom negócio. – Ele falou rindo por entre os dentes. Quase escondidos embaixo daquela barba. Que barba! Tinha inveja daquela barba, eu particularmente nunca tive saco de deixar a cara toda peluda, mas a barba dele era algo de se apreciar, bem aparadinha, volumosa, um desbunde!

- Bah! Que coisa bacana! E a gente vai poder beber de graça? – Perguntei já rindo e esperando ele esbravejar ou rir loucamente.
- A! Claro! Leva a tua mãe pra ela pagar a conta, vai aceitar visa, máster e boquete – falou ele rindo como uma hiena.

- Nem duvido! Bem louca! – respondi brincando (ou não).

A conversa continuou enquanto esperávamos os dois faltantes. O Mario chegou primeiro.

- E ai caras. – Falou ele sorrindo, era um cara enorme quase dois metros de altura, era o nosso segurança, e vice versa. Todo mundo cumprimentou e começamos a conversar paralelamente botando todas as novidades em dia.

- Bah! Me dei muito! Tava com menos de um pila no bolso, só tinha aquela maconha de semana passada, e nem pude fumar por que o pai veio passar uma semana aqui também. – Mario não era de Porto Alegre, era Uruguaio mas morava em porto alegre a uns bons quatro anos e quase nem se notava o sotaque. – Daí quando fui sair ele me perguntou como eu tava de dinheiro, mas não falei nada. Ele me deu vinte pila! To rico! – Continuou se rindo todo. Vinte reais é de fato uma fortuna pra quem não tem absolutamente nada na carteira, acredite.

O homem do teclado apareceu uns quinze minutos depois do combinado, mas nem notamos a espera, de tão boa que tava a conversa. Ele tava de carro e depois de todo mundo entrar e se cumprimentar, ele lançou o fatal:

- Pra onde gurizada? – tava com uma cara engraçada, parecia meio chapado ainda, tava até meio catatônico ou qualquer coisa que o valha.

- Eletric lady land né meu?! – falei ascendendo mais um cigarro. Todo mundo assentiu.

O Téo, era o cara mais legal da galaxia, era um pouco mais velho que o resto, amava um bom e velho rock n’ roll, não passava sem uma cervejinha e tava sempre disponível pra maluquices pela madrugada. Ele tinha um DVD pelo qual era pirado chamado “O universo”, todo mundo zoava que tinha custado noventa contos e era uma porra de um documentário do Discovery Channel ou qualquer outro canal que fica jogando informação cientifica mastigada pra leigos vinte e quatro horas por dia. Ele adorava! Vivia corrigindo os outros com afirmações das mais variadas. A pouco tempo o pessoal do escritório de contabilidade onde trabalhavam ele e Felipe tinham feito um passeio de caiaque em algum lugar do Acre, ou Sibéria, ou Três Coroas, Prússia, sei lá, e uma das gurias comentou algo do gênero: “- Nossa que lindo esse pôr-do-sol” ao que ele respondeu no mesmo segundo “BURRA! É UM CREPUSCULO!”.
De qualquer forma fomos até o Eletric lady land, mas a essas alturas já tava fechado. Como estávamos sempre por ali e éramos bem amigos do dono, pedimos pro segurança pra falar com ele e o cara deixou numa boa. Rodrigo entrou e no segundo seguinte estávamos sentados numa mesinha redonda ouvindo Led Zeppelin. Alguém ordenou: - Mostrem as cartas gurizada! – ao que todo mundo puxou todo o dinheiro que tinha e lançou no centro da mesa, tinha uns trinta e cinco contos, o que ali significava cerca de 7 litros de cerveja. A cerveja mais barata da cidade. Polar, a quem interessar possa. Durante o primeiro litro todo mundo conversava um tanto pausadamente, meio que aproveitando pra matar a sede da caminhada e de todas as outras peripécias, já durante o segundo começaram a surgir as máximas incontestáveis. Aquele tipo de coisa que, quando sai da boca de alguém, toda a mesa para de falar e ri até doer o abdome, ou faltar ar, ou desmaiar, enfim “you get the picture”. A primeira se não me engano foi do Mario.

- Sabe esses pesquisadores, que como trabalham com isso e precisam de fundos pra se manterem trabalhando inventam as coisas mais absurdas pra se pesquisar. Bom, um grupo de pesquisadores alemães, ou austríacos, ou sul africanos, descobriram que tomar ducha faz mal a saúde, por que conforme o plástico é aquecido pela água ele libera uma substancia, isso ao longo de um certo tempo é claro... – falou Mario, eu interrompi.

- Quanto tempo? – olhando com atenção.

- Sei lá, uns anos eu acho, mas enfim aquilo se mistura às partículas de água que ficam no ar e é absorvido pelo pulmão causando uma doença do mal lá. – Concluiu Mario.

- Mas nunca ninguém morreu de ducha! – Falei resignado.

- Não tem como saber, pode ter morrido, vai saber – Falou Téo.

- Bah! Vai ver os europeus já sabiam disso a muitos e muitos anos! – Falei, no que todo mundo despencou a gargalhar e encerrou o assunto.

As cervejas continuavam vindo e lá pelas tantas, Téo lançou outra máxima incontestável enquanto uma discussão política começava a surgir de fininho.

- O Brasil é o único país em que além de, puta ter orgasmo, cafetão ter ciúmes, e traficante ser viciado, pobre é de direita! Tim Maia. – Concluiu ao que toda a mesa despencou em risadas encerrando também essa discussão.

Lá pelo quinto litro, foi a vez do Felipe lançar sua máxima incontestável. Eu falava alguma coisa sobre cinema, e não conseguia me lembrar do nome do filme ou do ator ou da história e comecei a falar um trecho que eu me lembrava já meio bêbado e tudo.

- ta entra um cara mega gordão num restaurante e tudo mais, ai... não espera ai... acho que isso é antes... ta, sei que tem um lance na praia que pra entender a cena... puts, ta imagina um pôr-do-sol! – ele me interrompeu no mesmo segundo berrando!

- BURRO! É UM CREPUSCULO! – ao que a mesa toda novamente desatou em gargalhadas encerrando mais um assunto inacabado.

Mais dois litros se passaram sem máximas incontestáveis, já estávamos bem chumbados e decidimos dar uma volta de carro pra estourar o baseado que Rodrigo tinha fechado. Entramos e Rodrigo sentou bem no meio do banco de traz, começamos a dar umas voltas primeiro pra perder aquela sensação de perigo que se sente na João Alfredo e quando estávamos pela perimetral ascendemos o troço. Fumar dentro de um carro é uma experiência única porque cinco pessoas dentro de um cubículo mal ventilado com um baseado queimando torna tudo além de mais engraçado, mais poderoso, como fumar um cigarro com um aquário na cabeça, tu solta a fumaça, mas ela continua ali. Lá pelas tantas quando já estávamos bem chapados, Téo falou que ia parar pra abastecer. Rodrigo tinha sentado no meio como falei antes, e como bom maconheiro experiente sabia que o baseado ia passar por ele duas vezes a cada volta, nós nem tínhamos notado. O frentista ia abastecendo e olhava pra dentro do carro rindo. Todo mundo ficou um pouco constrangido mas nada de grave, a chapadeira ajudava a superar qualquer pudor. No entanto o motivo pelo qual o frentista ria não era por ter um monte de maconheiros fumando dentro de um carro, foi o motivo que constituiu a penúltima máxima incontestável! Na metade do abastecimento ele botou a cabeça bem perto da janela e falou pro Rodrigo:

- É o Romário então! Não passa a bola! – e riu ainda mais.

- Que? – perguntou Rodrigo sem entender.

- Já to quase terminando o abastecimento e o Romário não passa a bola! Bah! – e desatou a rir, obviamente quando nos demos conta do que ele tinha falado também rimos até nos mijarmos um pouquinho. Quando o carro já ia embora o frentista ainda falou:

- Passa essa bola Romário, os outros também querem jogar! – E foi rindo fazer o próximo abastecimento.

A ultima máxima foi despejada novamente por Felipe, que ao ver um carro da guarda municipal ficou todo malandro e falou:

- Ó os home Téo, da um tempero ai dos meu! – E ainda depois de ver que não se tratava da brigada militar e sim da guarda municipal completou o soneto com: - A é só os municipal, vai se foder, eu cago nesses municipal! – Ao que também todo mundo desatou a rir desesperadamente.

Teodoro levou cada um pra sua casa, e foi pra sua também, encerrando mais uma noite com cheiro de coisa louca. No dia seguinte, ninguém lembrava da noite inteira, e fomos todos conversando e pesquisando até acharmos um denominador comum no meio de toda aquela fumaça e doideira. E a ressaca, eu curei com uma espécie de ritual...

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(pra todo mundo que me conhece, ou não)

quarta-feira, 26 de agosto de 2009

Lady Raíssa (conto)

André sempre foi diferente. Aos nove anos o pai pegou ele no quarto, provando calçados e calcinhas, e bateu tanto nele que era de se imaginar que nunca iria acontecer de novo, ele parou no hospital com umas costelas fraturadas e uma concussão, deu até conselho tutelar, mas no fim acabou voltando pra casa mesmo. Sempre preferiu brincar de coisas mais femininas, bonecas e casinha, coisas de mulhersinha, mas a partir desse dia teve que brincar escondido, não era uma tarefa difícil porque o pai nunca estava em casa, sempre bebendo pelos botecos da vila, e a mãe trabalhando quase 24 horas por dia pra sustentar a família grande. Aos doze já tinha todo um jeitão diferente até de caminhar e de falar, e ficava se perguntando por que não era igual aos outros meninos, também sabia brigar e correr atrás de bola, só não gostava, não particularmente. Ficava tentando entender porque todo mundo tratava ele tão mal e chamava ele de maricas, veado, queima rosca e inúmeros outros apelidos. Tinha só um amigo, e eram amigos em segredo, saiam pra brincar separados e se encontravam numa sanga um tanto longe da vila, era um outro guri que também gostava de meninos, mas por algum motivo não tinha todo aquele jeitão, era um pouco mais velho que ele, talvez dois anos ou mais, se chamava Raí. E aquela era a única forma de carinho que André conhecia, até então pelo menos. Um fim de tarde ele foi assistir os outros guris jogarem bola no campinho, gostava de ver o Raí jogando, mesmo sendo humilhado e sempre acabar levando umas bofetadas e empurrões, ele nem se importava mais, depois de um tempo já tinha parado de chorar e de sentir quase qualquer coisa, ficava ali mergulhado em apatia, assistindo atentamente todos os movimentos do Raí, seu único amigo, uns outros meninos acabaram notando que ele seguia Raí com os olhos, com um olhar carregado de paixão, paixão adolescente. Começaram a comentar, a tirar sarro, fazer zueira. Raí não disse nada, a gritaria continuou até que Raí simplesmente teve que reagir, ou seria também taxado de veado, bixa, queima rosca. E ele reagiu, marchou até a beirada do campo e lhe enfiou umas porradas na cara, derrubou André no chão, chutou, etc. E André que achava que não conseguia mais chorar, descobriu que conseguia sim. A despeito desse episódio, eles continuaram a se encontrar na sanga, mas agora era diferente, tudo era diferente, não era mais carinho, era ódio, era uma paixão cheia de ódio. Isso se seguiu por anos, até que um dia, alguém viu, viu os dois no meio do mato, um encima do outro. Não demorou muito pra todo mundo ficar sabendo, não demorou muito pro pai do André ficar sabendo, e quando soube, esperou o filho sair de casa, e o seguiu até a sanga sem que esse notasse, esperou os dois tirarem as roupas, bêbado e bêbado de ódio e reprovação, saltou do esconderijo, facão em punho.
Ninguém nunca mais viu o Raí. André ficou com uma cicatriz no meio da cara pro resto da vida. Uma marca larga de facão. O pai dele deixou ele ali agonizando, André não morreu, não fisicamente pelo menos. Também não voltou pra casa, passou a morar na rua junto com um bando de outros meninos que meio que o salvaram, estavam indo se esconder na sanga pra fumar pedra, e viram um piá atirado sangrando, fizeram o que podiam pra conter o sangramento, quando André acordou estava no meio deles. Moravam na rua, se conheciam de vista, da vila, entre eles ninguém era melhor que ninguém, eram como ratos, sub-humanos, comiam lixo, fumavam crack embaixo das pontes do centro, roubavam, se prostituiam, o que desse na telha. André começou a conhecer a zona da Farrapos, compravam droga de um traficante meio paranóico e completamente psicótico, mas pra André isso não bastava, ele queria mesmo é se vingar, se vingar de todo mundo, se tinha um canivete ou arma na mão, era sanguinário, não ia atrás do dinheiro, ia atrás da vingança. Mais dia menos dia teve que bater de frente com o traficante por causa de uma divida d’um outro menino do bando, pouco mais novo que ele, o traficante chegou no galpão onde eles dormiam metendo chumbo pra tudo que era lado, uns guris morreram, os mais novinhos, outros fugiram, mas não André, ele ficou ali, se escondeu atrás de um barril daqueles grandes que se usa de lixeira, não tinha arma, só um pedaço de vidro quebrado que achou no chão na hora. Esperou o traficante dar as costas e enfiou quase 10 cm de vidro pra dentro da garganta do cara. O cara sangrava feito um porco, morreu ali mesmo, não levou 5 minutos pra morrer de hemorragia. André revistou os bolsos do filho da puta, e achou um monte de notas trocadas, umas três balas de revolver, e uma pedra enorme de crack. Dali pra diante André deixou de ser André, ele era o cicatriz. Se tornou traficante, conhecia as ruas e as pessoas como a palma da mão, foi fazendo fama e fazendo grana, não tinha nem 15 anos quando alugou o primeiro quarto num hotel barra pesada da Voluntários. Tinha dinheiro na mão, tinha nome na rua. Tava sempre trocando chumbo com traficante e policia, mesmo assim, ainda era aquele gurisinho, que gostava de brincar de boneca e se esfregar em outros gurisinhos. Começou a freqüentar a noite, a conhecer gente como ele, em certas noites se sentia quase parte daquilo tudo, como se finalmente tivesse encontrado o lugar onde não era diferente. Comprou umas roupas bacanas. Com dinheiro na mão se vestia cada vez menos de guri, e então de uma semana pra outra como por passe de mágica, André finalmente deixou de existir, ele dava lugar pra outra entidade, uma entidade amável e corajosa. Nascia Lady Raíssa. Uma noite numa boate barata na Cristovão Colombo, conheceu um homem bem bacana que também era traficante. O nome dele era Jesus, e tratou André como ninguém jamais tinha tratado antes, com carinho de verdade. Na mesma noite em que se conheceram, terminaram no quarto de André, se amando até amanhecer. Começaram a se ver diariamente, se ajudavam em todos os aspectos e gostavam mesmo e cada vez mais um do outro. André se sentia feliz como não era a muito tempo. Ninguém falava nada, ninguém mais chamava ele de veado, de isso de aquilo. Ele era respeitado, ele era mais do que respeitado, era temido, tinha conquistado seu lugar no mundo a bala e ponta de faca. O que fazia com quem devia grana de droga já tinha virado lenda urbana, seu "marido" também não era lá muito piedoso, tinha tido uma história em alguns aspectos até pior que a de André. Faziam uma dupla engraçada, André um negro alto com o corpo quadrado encolhido dentro daquelas roupas de mulher, e Jesus um alemão bem baixinho e desdentado. Num domingo quando circulava pelas bandas da lima e silva atrás da clientela, André se viu numa rua deserta e ouviu um grito vindo de trás. Quando olhou viu um carro vindo rápido na sua direção “não é os home” pensou consigo mesmo, precipitou o caminhar pra encontrar algum lugar mais movimentado achando que fosse algum outro traficante querendo disputar ponto, mas no segundo seguinte quatro neo-nazistas saltaram do carro e o cercaram. André tentou sacar o canivete de dentro da bolsa, mas um bastão o atingiu na cabeça, eles o lincharam, estupraram e fugiram rapidamente sem deixar rastros ou testemunhas. André se levantou se apoiando na parede, sentindo o sangue escorrer pela boca, se recompôs e tomou o rumo de casa, o cu sangrando a cabeça a mil, a falta de ar que sentiu aos nove anos, quando o pai lhe quebrou as costelas. Antes de voltar pra casa ainda passou num mercadinho e comprou uma garrafa de cachaça, foi desinfetando os ferimentos conforme andava. Chegou no quarto de hotel depois de andar meia Porto-Alegre. Tomou um banho e esperou Jesus que foi chegar só umas horas depois, querendo mais crack pra negociar na rua. Quando Jesus o viu, com o olho roxo e a boca cortada foi tomado por uma fúria assassina. André disse pra que não se preocupasse, que eles iam pagar de uma maneira ou de outra. Jesus telefonou pra alguns ratos atrás de qualquer informação a respeito dos carecas. Um punk amigo dele falou que tinha visto uns carecas de carro no Parcão á pouco tempo, quando André ouviu isso se levantou da cama mecanicamente e saiu seguido por Jesus. Pegaram a brasilia velha, que só usavam pra serviços, André colocou no porta-malas um galão de gasolina que tinham guardado, sem dar qualquer explicação. Rumaram pro local indicado o mais rápido possível. Quando chegaram nas proximidades, desceram do carro pra não chamar atenção, as armas na cintura, Jesus bufava de ódio. Encontraram depois de uma hora quatro carecas encostados num carro tipo, não fizeram nada, só ficaram de tocaia. Aproximadamente uma hora depois começaram a se dispersar, dois subiram no tipo e os outros dois foram cada um pra um lado, André e Jesus seguiram um dos rapazes até o ponto de ônibus, deram-lhe um tiro no joelho e o arrastaram aos gritos até a brasilia. Levaram o guri até a beira do Guaíba, Jesus tirou o careca pra fora do carro a coronhadas, gritando ordens, alucinado, quase ininteligível, o garoto chorava, estava todo mijado, babando e implorando pela vida, André que até então estava apático, apareceu com uma chave de roda, e um a um estraçalhou os ossos das pernas e braços do rapaz. Seu olhar mudara, tinha voltado nesse instante a ser Cicatriz, o assassino voraz. Jesus queria matar o guri, mas André disse que não e arremessou o careca pra dentro da brasilia, olhou nos olhos do guri, fixamente, sem resquício de qualquer sentimento, e perguntou com toda a calma, onde moravam os outros. O guri falou na mesma hora. André cobriu a boca do careca com uma meia calça que estava jogada por sobre o banco e Jesus guiou até o primeiro endereço. Era um apartamento na Oswaldo quase entrando na Protásio, desceram do carro com uma velocidade assustadora, como predadores cercando a presa, saltaram o portão e renderam o porteiro, fizeram ele levar os dois até o apartamento certo, chutaram a porta, o rapaz ainda estava acordado deitado sobre o sofá, tocaram o porteiro pra dentro. Enquanto Jesus mantinha os dois parados com a arma. André encharcou de gasolina toda a mobília, foi tudo muito rápido, o careca até tentou reagir, mas Jesus disparou duas vezes contra ele e esse caiu sentado, os pais do garoto vieram até a sala só a tempo de ver Jesus correr porta a fora e acender o rastro de gasolina com um isqueiro “bic”. Seguiram pro terceiro endereço, não conversavam, Jesus ainda furioso olhava pela janela com os olhos molhados e mordendo a mão, estava preocupado, sabia que cedo ou tarde dariam de cara com a policia e a coisa podia engrossar pro lado deles. André parecia tomado de uma calma angelical, sua mente estava clareando, ainda não tinham terminado. A outra era uma casa grande lá pelos lados do Partenon, invadiram pulando o portão, um disparo contra a fechadura, um pé na porta. Entraram quebrando tudo, tocando tudo pro chão. O rapaz não estava em casa ainda, então eles só mataram os pais que despertados com o alvoroço não tiveram nem tempo de implorar pela vida. Mancharam de sangue as paredes e atearam fogo nos cadáveres. A essas alturas, o guri que estava no banco de trás agonizava, delirando de dor. André e Jesus o levaram de novo até a beira do Guaíba e o estupraram até a morte, celebrando a chacina depois na maloca d’um primo de Jesus, perto do morro da Tuca, com cachaça barata, amor e crack. Entraram madrugada a dentro fumando e bebendo.
Voltaram pro centro uns meses depois, quando a poeira já tinha baixado, passaram um mês retomando a velha rotina, encontrando clientes saindo pras festas. Até que uma madrugada, bem perto do amanhecer, por volta das cinco e alguma coisa, Jesus achou ter ouvido um ruído no corredor, catou o revolver e ficou muito alerta. André falou pra ele parar de viajar e ir deitar um pouco, enquanto pintava as unhas roídas e quebradas pela milésima vez naquela madrugada, Jesus então pensou ouvir uma voz, apontou a arma pra porta e deu dois disparos se afastando rapidamente, a porta foi arrombada por uma perna fardada, o policial caiu ao chão sangrando pelo disparo, apenas um o atingira no pescoço, outros três entraram atirando, as balas de Jesus haviam acabado, ele se apressava em encontrar mais projeteis pela extensão visível do quarto, “oficial ferido” uma voz falou, uma saraivada de disparos arremessaram Jesus janela a fora, André tentou ampará-lo antes que esse caísse pela janela, mas foi detido por três policiais, algemado, brutalmente torturado, e eventualmente morto.
O oficial baleado no pescoço era pai de um dos neo-nazistas.

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terça-feira, 18 de agosto de 2009

Frenzy

Ela derrubou um helicóptero
Com uma arma de assalto
Tocou fogo na casa
Arranhou as paredes
Até arrancar as unhas dos dedos
Passou dias deitada, sem falar nada
Nadando no lixo, sorvendo lagrimas
As mãos ainda ensanguentadas
Passou um semestre pensando em suicídio
Suicídio é um nome bonito
Pra cocaína, valium e vodka barata
Ela começou a andar e não parou mais
Andou até morrer de exaustão
Sob um sol de 40 graus no meio do Cairo
Ela se atirou da Torre Eiffel
E de um edificio de 60 andares no Japão
Ela sequestrou um avião
E atirou ele em duas montanhas de dinheiro
Devorou uma banana de dinamite
Engoliu um fósforo asceso
Começou aulas de yôga
Arranjou um emprego
Matou toda a família e fez um banquete
Picou a mãe e o pai pra recherar os torteletes
Torteletes de gente
Ela descobriu uma nova religião
Fazem orgias e bebem sangue de galinha
Deixam despachos nas esquinas
Ascendem velas, são todos ateus
Ela escalou o Evereste
E morreu uma múmia gelada
Embebedou o capitão
Fez ele jogar o navio contra uma pedra enorme
Foi pra uma ilha deserta
Passou meses falando com uma bola
Fugiu da prisão
Deu a volta ao mundo em 90 dias
Sentada em frente a televisão
Comendo restos de restos
Com semanas de idade
Ficou gravida e abortou
Só pra ver qual era a sensação
De ter vida arrancada das entranhas
Vomitou uma massa cinzenta, disforme
E chamou aquilo de "agora"
Vida bruta, visceras dilaceradas
Flambou o destino com cogumelos alucinógenos
Colocou tudo o que conhecia num funil
Bebeu e explodiu
...
pra pirada da Jessie