quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

Samanta e o canibal (conto)

A noite se recusava a chegar, eu estava angustiado, coisa que não faz lá muito meu gênero. Sempre que estou enrolado com alguém trato a pessoa como lixo, não sei ao certo o porquê disso, meu psiquiatra me disse que é alguma espécie de mecanismo de defesa, e eu acredito piamente nisso porque até então havia funcionado excepcionalmente bem! Me arrumei tomando pelo menos meia hora para cada detalhe, detalhes os quais nem sei se ela notaria, acho que não pra falar a verdade, mas mesmo assim, como o tempo se arrastava podia me dar ao luxo de demorar o quanto tivesse vontade (normalmente me atraso sempre por ser muito letárgico e tudo mais, exceto quando estou excitado ou nervoso, ai acabo fazendo tudo de uma só vez e ficando com tempo de sobra nas mãos, esse era o caso na ocasião) era a ultima noite em que estaríamos juntos, pelo menos a ultima noite antes dela viajar. Saí de casa bem mais cedo do que o combinado, já não agüentava ficar olhando o relógio a cada quinze segundos. Íamos para um open bar na Av. Independência, o mesmo em que nos conhecemos. Acendi um cigarro e abri o portão eletrônico já dentro do carro. Dei a partida sem pressa e saí dirigindo estupidamente devagar. Ia ensaiando o que diria, estava pensando em alguma espécie de monologo de despedida, nada de muito meloso ou preparado, só queria dizer que, não era comum eu gostar tanto de alguém, e que não era comum também eu me sentir assim tão inseguro ou vulnerável, na verdade tinha a impressão de sermos iguais às vezes. Quando brigávamos, não falávamos nada, ficávamos em silencio um ignorando a existência do outro. Isso até que algum decidisse deixar passar, ás vezes levava horas, às vezes dias, mas quando voltávamos a nos entender riamos de nós mesmos, o casal mais introspectivo e misantropo do mundo! Os amigos riam também. De qualquer maneira atravessei o centro no que me pareceu uma eternidade, mal podia esperar pelas dez horas. Parei em um bar pra comprar uma carteira extra de cigarros, um Ferrero Rocher, e tomar um drink pra matar tempo. Vivia enchendo ela de doces, ela adorava! Dizia que eu a estava engordando pra depois comer, não necessariamente nessa ordem, e eu gostava de ver os olhinhos dela quando eu botava do nada nos seus bolsos algum doce qualquer, sem ninguém perceber. A verdade é que eu estava em pânico, me sentia todo escurecido por dentro, como se tivesse tomado algum tipo misterioso de veneno que me deixava sentindo mal o tempo todo, e que só reduzia seus efeitos quando ela estava por perto, mesmo que estivesse me ignorando ou brava com alguma coisa, com aquelas bochechas enormes inchadas formando uma espécie de bico, quase como uma criança pequena. Achava lindo, achava ela toda linda, até as coisas das quais ela não gostava me encantavam de uma maneira hipnótica, eu ficava em transe quando ela estava por perto. E isso me dava um medo do caramba! Não me sentia assim tão desnorteado por uma fêmea desde meus tempos de colégio, quando ainda estava descobrindo certas coisas. Isso de ficar bestificado, com os olhos cravados em um ponto cego por horas a fio, sentindo um aperto indescritível na garganta sem o menor motivo. É torturante! Deviam inventar algum tipo de remédio, uma espécie de Prozac pra guris apaixonados. Ia voar das prateleiras! Mas enfim, terminei meu drink cerimoniosamente, era um uísque que deveria ser bom se o muquirana dono do estabelecimento não misturasse água pra fazer render mais as doses, devia ser judeu, todos os judeus estão sempre inventando alguma maneira maluca de aumentar só um pouquinho os lucros. Que raça mais admirável! Pisados, trucidados, perseguidos execrados, e ainda assim fortes. Orgulhosos de seu sangue. Fico impressionado com o amor incondicional que tem ao dinheiro, pra mim nunca passou de papel, tanto que eu torro dinheiro em tantas coisas inúteis que acabo sempre duro e sem nada. Queria ter um pouco de sangue judeu, mas só um pouquinho, só pra ver se eu aprendia a administrar qualquer coisa, quem sabe eu desse um pouco mais de valor ao trabalho e tudo. Às vezes desconfio que nasci com algum parafuso a menos, minha mãe sempre me diz isso quando nos encontramos num bar ou outro pra tomar uns drinks. Já desisti de contestar, acho até que a velha tem razão, mas de qualquer maneira ainda queria ter um pouquinho só de sangue judeu, pra ver se eu ficava mais inteligente ou perseverante ou qualquer outra das qualidades dessa raça maluca.

Voltei pro carro. Já eram nove e alguma coisa, os ponteiros não se mexiam, num dado momento tive a impressão de vê-los regredir em vez de avançar, esse é que é o problema com os relógios, estão sempre marcando o tempo exato, já dentro da nossa cabeça as coisas não são bem assim, um segundo pode durar quase um dia, e às vezes um dia não dura mais que poucos minutos, já pros relógios não, é sempre a mesma coisa. Entrei no carro e fui dirigindo, ainda estupidamente devagar. Decidi ir logo pra maldita boate e ficar por lá mesmo esperando por ela. Quando estava na metade do caminho, meu celular começou a tocar, era ela, queria que a pegasse em casa. Fiquei contente, mesmo sem entender o porquê, visto que ela nunca havia me pedido isso antes, sempre foi independente, até demais, mas não falei nada disso é claro, talvez pudesse aborrecê-la ou algo assim, com aquele gênio péssimo e tudo. Mudei meu ritmo num instante, cheguei em uns dez minutos, liguei pro celular sem insistir muito só pra que ela visse que já a esperava em frente a casa. Me encostei no carro e acendi outro cigarro enquanto ela saía pela porta da frente apagando as luzes. Puxa, já tinha visto ela quando QUER ficar irresistível, mas esta noite ela estava fenomenal, tive que fazer um puta esforço pra não começar a babar ali mesmo, ou a uivar loucamente como aqueles lobos imbecis dos desenhos da Warner. Ela veio sorrindo, me deu um beijo no rosto e foi para o lado oposto do carro, fui entrando também, sentei um instante e fiquei olhando pra ela, estupidificado, mesmerizado, imbecilizado por aquela visão, aquela súcubos, pronta a drenar minha energia vital gota a gota, me sorver como se eu fosse um copo grande de absinto ou algo assim. Ela me olhou um instante, enquanto também acendia um cigarro, baixou um pouco a cabeça sorrindo e perguntou:

- Que foi? - mostrando aqueles dentes enormes. Aquele sorriso impecável. Fiz um esforço dos diabos pra falar diante daquela aparição. E isso tudo tentando não ser piegas nem nada, mas quando a gente ta abestalhado por uma mulher bonita não há remédio.
- Tu parece algo saído dum livro de mitologia grega, uma ninfa - Falei isso rindo pra soar um pouco como uma brincadeira, mas a verdade é que eu não estava brincando nem nada, estava quase me perdendo naqueles olhos castanho-esverdeados, naquela boca vermelha de lábios grossos, naquela pele branca quase sem maquilagem, estava quase desmaiando. Quando terminei de falar ela riu pra valer, riu da minha cara, eu nem me importei, ri também, pois sei como deve ter sido engraçado ouvir uma coisa assim de um cara como eu, um vira-latas, cético sem o menor amor a vida.
Dei partida e fomos indo bem devagar conversando sobre isso e aquilo, nada de profundo ou sequer interessante, o relógio já ia me traindo de novo, os minutos passavam como fossem segundos, sem a menor piedade. Comecei a pensar em como ficaria quando ela se fosse pra Europa, eram apenas dois meses, ela disse algumas semanas antes, e ao me lembrar disso, imaginei um relógio enorme, em que um dia fosse o equivalente a um ano. Nada faria mais sentido, e o pior é que nem sequer estávamos namorando nem nada, estávamos só enrolados. Mesmo assim não havia nada que eu pudesse fazer, não ia pedir a ela pra ser minha, até porque isso seria contra tudo o que eu acredito. Eu, no entanto, era todo dela, e ela não precisava nem pedir, não precisava fazer absolutamente nada.
Chegamos à independência no que me pareceu um minuto no máximo. Achei um estacionamento bem próximo da boate e escoltei ela até a entrada, a fila estava enorme, dei uma nota de 50 mangos ao segurança pra podermos entrar pela lateral, sem ter que passar por todo aquele martírio, ele me conhecia, sabia que não ia conseguir me arrancar mais nada então me deixou entrar com um aceno discreto de cabeça. Pagamos a entrada e entramos furtivamente pra ninguém reclamar nem nada. A música estava fantástica. Acho que era The Strokes, mas não consigo me lembrar com clareza, subindo as escadas dei um beliscão de leve na bunda dela, aquela bunda escultural! Ela nem olhou pra trás, mas ouvi seu sorriso se abrindo. Achamos uma mesa bem perto do bar, ela já se balançava ao som da guitarra elétrica. Levantei pra pegar uns drinks e quando voltei com três doses de uísque (duas para mim, uma para ela), ela estava conversando com algumas amigas que estavam circulando ali por dentro. Sentei-me atrás dela e a puxei sobre o meu colo, sem cumprimentar ninguém nem nada, todos sabiam quem eu era: “O rolo da Samanta”, essa era a minha alcunha. Eu era cordial e tudo mais, mas nenhum deles realmente me interessava ou me excitava, eram pessoas tediosas, acomodadas, satisfeitas, sem vícios nem dramas, todos preocupados em ser alguma coisa o tempo todo. Mantínhamos uma relação edificada em “ois” e “tchaus” ocasionais, fiquei tomando aquele uísque enquanto elas conversavam sobre isso e aquilo. Eram cheias de piadas internas e expressões particulares, eu basicamente não compreendia nada do que falavam, era grego pra mim, o que me deu uma sensação meio olímpica, ouvindo grego com uma ninfa no colo, imaginei se o bar servia retsina ou alguma outra bebida maluca que me deixasse sentindo ainda mais esquisito. A música continuava ótima, mas não iria descer pra dançar até estar pelo menos um pouco bêbado, então tomei os dois copos de um gole só, ninguém estranhou nem nada, sabiam que eu era um bêbado. Ela já estava me chamando pra descermos, começou a me dar sinais, chacoalhava aquela bunda encima de mim, me deixando excitado pra cacete, depois se levantou subitamente me tomando pela mão. Acompanhei sem falar nada. A pista estava lotada, como era de se esperar, o lugar sempre lotava nas festas open bar, começamos a dançar meio espremidos no meio da multidão, ela dançava como o diabo! Atirava as pernas sobre mim e tudo, com aquele corpo perfeito, aquele rosto perfeito, me olhando como se quisesse me engolir inteiro! Nós suávamos como se estivéssemos transando, apesar do ar condicionado e dos milhares de ventiladores espalhados pela pista, suávamos como se estivéssemos no Caribe, ou bem encima do maldito equador, e era ótimo! Quando me dei conta já era quase uma hora, o relógio me traindo de novo. Cheguei à conclusão de que precisava falar cedo ou tarde, precisava tocar no assunto que nós dois cuidadosamente evitávamos: envolvimento. Comecei a organizar algo na cabeça, algo sólido, ainda dançávamos, avisei que ia pegar mais uns drinks e a esperaria no andar superior, falei que precisava lhe dizer algo, ela demorou a escutar, não notei se de propósito ou não (acredito que sim), tive de repetir umas três ou quatro vezes, mas na ocasião achei que fosse culpa do som ou do caos que era aquela gente toda se amontoando na pista.
Me afastei meio desnorteado e subi as escadas rápido, como que pra acabar logo com aquilo tudo, pedi mais três doses, tomei uma sem nem piscar, e fiquei bebendo a outra, a essa altura já estava começando a ficar bêbado, queria lhe falar tudo antes que estivesse fora do ar. Ela demorou, demorou demais, terminei a segunda dose, dei uma olhada do balcão pra ver se a enxergava, não estava mais na pista, achei que devia esperar mais alguns instantes, devia estar subindo. Em mais alguns minutos terminei a terceira dose. Minha paciência já havia se esgotado depois de 20 minutos, estava ali, sentado no bar, irritado como o diabo, já encarando qualquer imbecil que passasse, reconheci um rosto familiar se aproximando, mas não era o dela. Era uma das amigas, uma gordinha. Ela se aproximou, sentou do meu lado e ficou me olhando com um olhar esquisito. Eu dei um meio sorriso e meneei a cabeça pra ver o que ela queria, ela ficou em silencio por um tempo, no momento não me dei conta, mas era um olhar de pena, uma pena graciosa como se ela fosse Ghandi, ou Madre Teresa. Enfim ela falou encabuladissima:

- A Samanta ta lá embaixo ficando com o Rick... - Baixou os olhos quando disse isso.
- Ela me pediu pra te avisar. - Continuou ainda sem levantar os olhos. Eu sorri. Não estava feliz, nem um pouco, pra falar a verdade nem sabia quem era Rick ou porque exatamente sentia vontade de lhe arrancar as entranhas com as mãos nuas. Não entendia também o sentido daquilo tudo, fiquei sem ação tentando extrair sentido do que a menina me dissera, acho que cheguei a lhe pedir pra repetir uma ou dez vezes o que havia dito, e depois de finalmente entender, sorri novamente e agradeci. Permaneci ali. Bebendo dose atrás de dose, sem falar nada.

Depois da terceira dose consecutiva a menina que veio me avisar se cansou ou se assustou (pouco importa) e decidiu por bem me deixar sozinho, até porque eu não parecia lá muito abalado, sorrindo e tudo e ela devia ter mais o que fazer do que ficar ali com um praticamente estranho. Samanta apareceu mais tarde, bem mais tarde, veio como se nada houvesse acontecido. Não me deu satisfações, só me tocou o rosto, com aquelas mãos molhadas do suor de outro cara, eu sentia o cheiro do cara nela, mas não falei nada, nem me mexi, nem sequer a olhei. Continuei bebendo, ela começou a falar.

- Desculpa... Não queria ir embora e te deixar aqui, pensando em mim. - Me olhou como se isso fizesse muito sentido, como se fosse um ato de compaixão ou algo do gênero. - Afinal, não temos nada! Não fica bravo. - Ela continuou. Tentou me beijar, e eu deixei a principio, mordi a boca dela com tanta força, que acho que até hoje lhe falta um pedaço daquele lábio inferior carnudo. Ela gritou e se afastou cobrindo os lábios. Sangrando pra burro. Peguei mais três doses pra viajem, e fui embora.

No dia seguinte ela viajou pra Europa, mantivemos contato escasso desde então, ainda lembro o rosto dela naquela noite, o medo que sentiu quando dilacerei seu lábio inferior, o guri com quem ela ficou, o tal de Rick, nunca cheguei a ver pessoalmente, ou talvez tenha visto e não dei muita atenção. Quanto a ela, nunca mais vi. A propósito, o Ferrero Rocher que não cheguei a entregar a ela, dei de presente a uma prostituta com quem cruzei na mesma noite, uma verdadeira artista e entusiasta da profissão.

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quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

Filosofódas (conto)

Era um apartamento grande no bairro Menino Deus, os pais dele estavam viajando, então tínhamos a casa inteira a nossa disposição. Não que isso fosse novidade, estávamos juntos a já alguns meses, talvez dois ou mais. O apartamento era no térreo, e eu não tinha permissão pra fumar dentro dele, a casa sequer tinha cinzeiros, de qualquer maneira estava frio demais pra abrir a maldita janela, e como estava de mau humor decidi ascender uma porra de um cigarro encima da cama mesmo. Deitado, olhando praquele ventilador de teto branco imóvel, quase invisível no teto da mesma cor. Ele me olhou quando ouviu o som do isqueiro, ia reclamar, mas não falou nada. Não falávamos nada havia quase meia hora já, o clima estava ficando pesado. Uma garoa começou a se anunciar pra tornar tudo ainda melhor. Quando do nada ele se virou na cadeira giratória, olhei pra ele, e notei uma pagina de internet aberta imóvel já a quase tanto tempo quanto durara nosso silencio. Ele me olhou longamente, estava organizando as palavras dentro da cabeça de forma que soassem casuais quando ele as cuspisse na minha cara. Esperei pacientemente, deitei novamente e continuei a fumar meu cigarro. Em alguns instantes ele começou a falar, eu não o olhava então, estava concentrado no ventilador e no teto branco, pensando se ausência de cor poderia denominar uma nova cor – Branco – A verdade é que não tinha a menor vontade de estar ali, pelo menos não naquele momento. Pensei em ir até o centro e pegar uma garrafa de bebida, assim que o outro terminasse de falar. Ele começou meio sem jeito, falou algumas coisas a esmo e por fim soltou tudo de uma vez.

- Acho que devíamos terminar. - Ele falou desviando os olhos pro chão. Talvez estivessem molhados, gosto de pensar que sim. Em todo o caso não me mexi, nem esbocei reação, fiquei ali, fumando. Ele gaguejou qualquer coisa, não dei muita importância, interrompi antes que começasse.
- Por que tu diz isso? - Ainda sem me virar.
- Para de fumar aqui dentro... - Fiz silencio. Ele continuou.
- Isso ta ridículo já, a gente se odeia, não consigo nem ficar perto de ti. Acho que devíamos sair com outras pessoas. Podemos continuar amigos. Na verdade acho que nunca fomos muito mais que amigos. -

Levantei ainda fumando, ainda em silencio, catei minhas coisas, e fui saindo, chovia mais forte agora, por sorte estava com uma jaqueta velha de couro e alguns trocados extras no bolso. Ele ficou me olhando pegar as minhas coisas, os olhos cheios d’água, um certo rubor no rosto. Decidi me mandar logo antes que ele começasse a chorar pra valer, se tem uma coisa que me parte o coração é ver os outros chorando. Sério, fico sem reação, nunca sei o que fazer, acabo sempre dizendo algo idiota ou fazendo besteira, mas o que se pode fazer? Eu fico nervoso pra caralho!

- Aonde tu vai? - Ele perguntou com a voz já meio engasgada.
- Out - respondi, tenho mania de lançar palavras em inglês quando não encontro uma que expresse exatamente o que quero dizer em português.
- Sair com outras pessoas quem sabe - disse isso vestindo a jaqueta e abrindo a porta. Não olhei pra trás, mas podia ouvir ele me seguindo pela casa até a saída. Tentei sair bem rápido pra não ter que dizer mais nada, por que nessas situações parece que quanto mais se fala, pior a coisa fica, é melhor deixar tudo como esta, não se aprofundar muito em “razões e emoções” ou então acaba virando novela. Já tinha todo um plano traçado, ia ligar pra algum vagabundo e comprar uma vodka barata, talvez alguns cigarros e ficar pelo centro até sentir sono o suficiente para ir para casa dormir. Quando atingi a porta ele me segurou pelo braço, dei um puxão forte, e me desvencilhei, visto que sou bem maior e relativamente mais ignorante que ele não houve sequer reação. Porém, quando saí porta a fora, ouvi um soluço. Merda! Pensei comigo mesmo. Aqui vamos nós. Olhando para traz vi que ele estava mesmo chorando o filha da putinha, a principio me deu muito ódio por que eu sabia que não ia conseguir ser frio com o cara se debulhando em lagrimas na minha frente, puta merda que enrascada, comecei então a falar um monte de coisas sem o menor sentido, por que, como eu disse antes, sempre acabo fazendo merda se alguém começa a chorar, é fatal, é só alguém começar a chorar perto de mim que fico todo atrapalhado, falo coisas que nem sei de onde vem só pra ver se consigo acalmar o infeliz! Acho que até pedi o guri em casamento, pra ver se o diabo parava de chorar, como não surtiu resultado algum e eu não estava com a menor vontade de conversar decidi chutar o balde de vez, falei meio que gritando.
- Olha aqui, tu acaba comigo, diz que me odeia e depois fica ai chorando pra caralho só por que eu vou embora, vai se foder, não to nem ai também, pode fica ai chorando eu vou embora do mesmo jeito, se quiser fala comigo sabe onde me acha. - Dei as costas e fui embora, ele não tentou me seguir dessa vez, só bateu a porta bem forte, acho que não gostou do que eu disse, mas na hora eu nem dei bola, gostava dele e tudo o problema é que as pessoas esperam demais umas das outras, hoje em dia não basta gostar, estar por perto e tudo mais, a gente tem que ter dinheiro na carteira, ter um emprego uma rotina, um monte de merdas que eu simplesmente não tenho, e nem vou ter tão cedo eu acho, esse negócio de mudar é difícil pra caramba, não é assim da noite pro dia, e no fundo ninguém QUER mudar, um relacionamento é composto de duas (ou mais) pessoas, só que fica sempre essa merda de tentar domesticar o outro, eu me recuso a ser domesticado, por isso meus relacionamentos terminam quase sempre assim, eu vou embora simplesmente, não adianta ficar batendo na mesma tecla até gastar o maldito dedo, é simples, ou funciona, ou não funciona.

Depois desse episódio peguei o primeiro ônibus que passou, estava chovendo pra burro, eu tava ensopado, não tinha lugar pra sentar, e as janelas estavam todas fechadas, me senti um legume, sendo cozido no vapor, apesar do frio do lado de fora, a temperatura no ônibus estava insuportável, acabei descendo umas duas paradas antes pra ver se eu parava de suar, e por que gosto mais de frio e chuva quando se esta agasalhado do que de ser cozido no vapor, acho que se eu fosse algum tipo de comida seria um sorvete, não suporto calor, começo a derreter, a suar baldes e mais baldes, nunca conseguiria levar a vida de um legume, da mesma maneira acho que jamais conseguiria viver na Bahia, ou Rio de Janeiro, é simplesmente perto demais do maldito equador, fico imaginando se aquela gente sua o tempo todo, e na maioria das vezes me convenço que sim, mas de qualquer maneira desci algumas paradas antes e fui andando pela chuva, estava chegando perto da perimetral, quando vi uma silueta conhecida em uma parada adjacente, reconheci pelas roupas escuras, e pelos acessórios metálicos espalhados pelo corpo todo. Era o Jean, um amigo paulista que morava em porto alegre também, ótima companhia pra se derrubar uma garrafa de vodka barata, ótima companhia pra diversas coisas por sinal, jogar xadrez, brigar na rua, bater carteira, roubar bebidas, enfim todo e qualquer tipo de atividade que envolva adrenalina pra cacete. Corri até a parada pra evitar que ele entrasse em um ônibus qualquer, ele me viu vindo e já abriu um sorriso, acho que na verdade não estava sorrindo, estava rindo de mim, todo ensopado com o cabelo caído sobre a cara correndo no meio da chuva. Nunca saberei ao certo, e pra falar a verdade também, pouco me importa.

- E ai cara! - disse eu entusiasticamente
- E ai! - respondeu de imediato enquanto já me seguia rumo à Cidade Baixa. Sei que fomos conversando sobre isso ou aquilo, ele me contou como tinha sido maluco o seu dia, e eu convidei ele pra tomar uma vodka comigo antes de ir pra casa, ele obviamente aceitou sem nem sequer pestanejar, agora isso sim é um guri! Fiquei pensando, enquanto falava sobre coisas aleatórias, no rumo que poderíamos tomar. Algum lugar pra se sentar durante uma noite de chuva e beber mais tranquilamente. Passamos num mercado pela Lima e Silva e compramos a bebida e uma carteira de cigarros bem vagabunda, em seguida ele sugeriu que fossemos pra casa de um amigo dele que ele queria me apresentar a algum tempo já, eu havia contado a estória, e ele achando formidável o meu estado de espírito decidiu me apresentar um garoto que ele conheceu numa noite dessas. Atravessamos toda a Cidade Baixa sob uma chuva torrencial inextinguível, eu estava molhado até os ossos e ele também, mas não nos importávamos nem um pouco, desde que não molhássemos a bebida ou os cigarros. Paramos por alguns instantes no posto Ipiranga da João Pessoa, e tomamos pelo menos um terço da garrafa aos martelinhos, enquanto fumávamos alguns cigarros protegidos da chuva, eu já estava achando meio imbecil andar tudo aquilo só por uma foda, mas não tinha nada de melhor pra fazer e decidi continuar com aquela idiotice até o final fatídico, ele começou a me falar do guri que ia me apresentar. Falou que era ateu, que era de São Paulo, que estava aqui estudando filosofia, e que já tinha lido todos os grandes, desde Goethe, Baudelaire e Rimbaud, até Miller, Bukowsky e Burroughs, eu fiquei encantado, achei que ia conhecer uma foda, e no fim estava às margens de conhecer um filosofo. Talvez um poeta! Pedi para irmos duma vez, e ele me informou que era logo na esquina. Fiquei ainda mais excitado, ainda chovia muito forte então sugeri que acendêssemos mais um cigarro antes de ir, e assim fizemos, fumamos descansadamente enquanto a garrafa já chegava a sua metade. Já estávamos um tanto bêbados, mas não o suficiente ainda. Caminhamos então até a casa do guri, que era mesmo logo na esquina, ele tocou o interfone e logo o cara respondeu lá de cima, tinha um sotaque estranhíssimo, meio arrastado o que me lembrou um pouco a Bahia e aquela estória toda dos legumes baianos, comecei a rir já meio bêbado, mas decidi não dizer o porquê, pensando que achariam que sou maluco. Quando o cara veio, eu fiquei ainda mais contente, esperava que ele fosse feio e esquisito, imaginei assim não sei bem o porquê, talvez pela voz no interfone ou pela imagem dos baianos sambando na minha cabeça bêbada, sei que entramos e em nem cinco minutos a chuva acalmara lá fora (lei de Murphy), ele nos recebeu um tanto efusivamente dando abraços e tudo o mais, o que eu achei super estranho, mas não liguei muito já que estava bem na onda da agarrar o guri. Entramos e o seguimos até o segundo andar, ele abriu a porta revelando um nicho cheio de livros e garrafas pela metade atiradas pelos cantos, notei então que ele também estava um pouco bêbado, e fiquei ainda mais contente. Tocava um som no computador em alguma das salas vizinhas, não me dei ao trabalho de verificar em qual por que isso pouco importava, era algo frenético; agressivo; autodestrutivo; auto-indulgência insana; Mindless self indulgence. Como falei às vezes uma língua só é pouco pra expressar certas sensações ou estados de espírito. Comecei a cantar junto loucamente e meio que me chacoalhar em um ritmo febril, o guri foi pegar mais umas cervejas na cozinha, e voltou um pouco depois com duas garrafas e uma toalha, eu e o Jean nos secamos e continuamos a conversar descontraidamente, e a beber é claro. A ligação foi inevitável, em poucos minutos estávamos falando de tudo, música, filmes, livros, pessoas, acho que em certo ponto até contei o que me acontecera mais cedo, não me recordo por que a vodka já estava terminando e só eu estava bebendo ela ainda, Em algum ponto da noite deitamos todos sobre o carpete e ficamos fumando, olhando para o teto, a chuva havia parado completamente e havia um silencio imperioso, a playlist tinha terminado, ninguém tinha coragem de romper aquele silencio. Uma das respirações tornou-se mais alta repentinamente. Eu reconheci os grunhidos do Jean, reconheceria em qualquer lugar, cada pessoa faz um som característico quando cai no sono sem querer, ele não roncava nem nada, só respirava muito alto, como se estivesse transando, e às vezes dava uns grunhidos como uma criatura, imaginei ele na selva, como um animal, numa caverna ou algo do gênero, hibernando quem sabe. Tenho todo o tipo de pensamentos estranhos quando estou muito bêbado, e eu estava muito, mas muito bêbado. Não lembro quem se mexeu primeiro, sei que no segundo seguinte estávamos nos beijando enfurecidamente, eu e o guri, ambos bêbados, fomos para o quarto, a música deixara de tocar, ouvíamos a música dos nossos corpos, os suores, as línguas, as respirações se cruzando no ar, dois corpos insistindo por ocupar o mesmo lugar no espaço, foi ai que eu entendi! O lance de domesticar. As pessoas querem se tornar uma só. É uma espécie estranha de possessão, em que, você não domina o corpo, mas impõe limites a ele, mesmo que não te pertença. Como uma marionete, você não quer um ser humano, genuíno, livre, você quer um brinquedo. Um boneco, alguém que se molde a suas vontades, feito uma argila, uma paranóia meio divina, moldar um ser humano da argila, como se você fosse Deus. Mas não da certo por que o ser humano é basicamente, um amontoado de defeitos e manias, e mudar isso é destruir o que há de humano nele. A disciplina destrói a humanidade, o amor destrói a humanidade, quando tive essa epifania no meio de uma transa, bêbado sobre a cama de um desconhecido, percebi que jamais teria um relacionamento de novo, e por estranho que pareça não senti qualquer horror nisso, soava algo completamente natural e realizável. Quando terminamos a transa, horas depois, voltamos para a sala semi-nus pra fumar uns cigarros e beber mais um pouco. Jean estava sentado diante do PC com o resto de vodka que eu não conseguira derrubar. Acho que tinha fingido adormecer pra que a gente pudesse ir pro quarto ou algo assim, mas nem falei nada. Estava um clima muito bom agora, a música havia voltado a tocar, estava amanhecendo e o céu tinha um tom entre o azul da noite e o amarelo bem claro quase invisível. O guri me convidou pra passar a noite com ele, mas diante de minha recém descoberta nova filosofia recusei educadamente, sem dar explicações nem nada. Ele pareceu um tanto desapontado, mas não reclamou também. Fiquei imaginando se também tinha tido uma epifania semelhante em alguma noite bêbada. Por fim eu e o Jean deixamos o apartamento e fomos pra casa, terminamos a vodka no caminho, e eu levei os cigarros por que sou bem mais dependente deles do que o meu companheiro. Fui pra casa numa nuvem de satisfação, algo de mágico acontecera, em algum ponto da noite, não sei dizer bem ao certo quando. A sim, o nome dele era Rafael.

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