quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

Filosofódas (conto)

Era um apartamento grande no bairro Menino Deus, os pais dele estavam viajando, então tínhamos a casa inteira a nossa disposição. Não que isso fosse novidade, estávamos juntos a já alguns meses, talvez dois ou mais. O apartamento era no térreo, e eu não tinha permissão pra fumar dentro dele, a casa sequer tinha cinzeiros, de qualquer maneira estava frio demais pra abrir a maldita janela, e como estava de mau humor decidi ascender uma porra de um cigarro encima da cama mesmo. Deitado, olhando praquele ventilador de teto branco imóvel, quase invisível no teto da mesma cor. Ele me olhou quando ouviu o som do isqueiro, ia reclamar, mas não falou nada. Não falávamos nada havia quase meia hora já, o clima estava ficando pesado. Uma garoa começou a se anunciar pra tornar tudo ainda melhor. Quando do nada ele se virou na cadeira giratória, olhei pra ele, e notei uma pagina de internet aberta imóvel já a quase tanto tempo quanto durara nosso silencio. Ele me olhou longamente, estava organizando as palavras dentro da cabeça de forma que soassem casuais quando ele as cuspisse na minha cara. Esperei pacientemente, deitei novamente e continuei a fumar meu cigarro. Em alguns instantes ele começou a falar, eu não o olhava então, estava concentrado no ventilador e no teto branco, pensando se ausência de cor poderia denominar uma nova cor – Branco – A verdade é que não tinha a menor vontade de estar ali, pelo menos não naquele momento. Pensei em ir até o centro e pegar uma garrafa de bebida, assim que o outro terminasse de falar. Ele começou meio sem jeito, falou algumas coisas a esmo e por fim soltou tudo de uma vez.

- Acho que devíamos terminar. - Ele falou desviando os olhos pro chão. Talvez estivessem molhados, gosto de pensar que sim. Em todo o caso não me mexi, nem esbocei reação, fiquei ali, fumando. Ele gaguejou qualquer coisa, não dei muita importância, interrompi antes que começasse.
- Por que tu diz isso? - Ainda sem me virar.
- Para de fumar aqui dentro... - Fiz silencio. Ele continuou.
- Isso ta ridículo já, a gente se odeia, não consigo nem ficar perto de ti. Acho que devíamos sair com outras pessoas. Podemos continuar amigos. Na verdade acho que nunca fomos muito mais que amigos. -

Levantei ainda fumando, ainda em silencio, catei minhas coisas, e fui saindo, chovia mais forte agora, por sorte estava com uma jaqueta velha de couro e alguns trocados extras no bolso. Ele ficou me olhando pegar as minhas coisas, os olhos cheios d’água, um certo rubor no rosto. Decidi me mandar logo antes que ele começasse a chorar pra valer, se tem uma coisa que me parte o coração é ver os outros chorando. Sério, fico sem reação, nunca sei o que fazer, acabo sempre dizendo algo idiota ou fazendo besteira, mas o que se pode fazer? Eu fico nervoso pra caralho!

- Aonde tu vai? - Ele perguntou com a voz já meio engasgada.
- Out - respondi, tenho mania de lançar palavras em inglês quando não encontro uma que expresse exatamente o que quero dizer em português.
- Sair com outras pessoas quem sabe - disse isso vestindo a jaqueta e abrindo a porta. Não olhei pra trás, mas podia ouvir ele me seguindo pela casa até a saída. Tentei sair bem rápido pra não ter que dizer mais nada, por que nessas situações parece que quanto mais se fala, pior a coisa fica, é melhor deixar tudo como esta, não se aprofundar muito em “razões e emoções” ou então acaba virando novela. Já tinha todo um plano traçado, ia ligar pra algum vagabundo e comprar uma vodka barata, talvez alguns cigarros e ficar pelo centro até sentir sono o suficiente para ir para casa dormir. Quando atingi a porta ele me segurou pelo braço, dei um puxão forte, e me desvencilhei, visto que sou bem maior e relativamente mais ignorante que ele não houve sequer reação. Porém, quando saí porta a fora, ouvi um soluço. Merda! Pensei comigo mesmo. Aqui vamos nós. Olhando para traz vi que ele estava mesmo chorando o filha da putinha, a principio me deu muito ódio por que eu sabia que não ia conseguir ser frio com o cara se debulhando em lagrimas na minha frente, puta merda que enrascada, comecei então a falar um monte de coisas sem o menor sentido, por que, como eu disse antes, sempre acabo fazendo merda se alguém começa a chorar, é fatal, é só alguém começar a chorar perto de mim que fico todo atrapalhado, falo coisas que nem sei de onde vem só pra ver se consigo acalmar o infeliz! Acho que até pedi o guri em casamento, pra ver se o diabo parava de chorar, como não surtiu resultado algum e eu não estava com a menor vontade de conversar decidi chutar o balde de vez, falei meio que gritando.
- Olha aqui, tu acaba comigo, diz que me odeia e depois fica ai chorando pra caralho só por que eu vou embora, vai se foder, não to nem ai também, pode fica ai chorando eu vou embora do mesmo jeito, se quiser fala comigo sabe onde me acha. - Dei as costas e fui embora, ele não tentou me seguir dessa vez, só bateu a porta bem forte, acho que não gostou do que eu disse, mas na hora eu nem dei bola, gostava dele e tudo o problema é que as pessoas esperam demais umas das outras, hoje em dia não basta gostar, estar por perto e tudo mais, a gente tem que ter dinheiro na carteira, ter um emprego uma rotina, um monte de merdas que eu simplesmente não tenho, e nem vou ter tão cedo eu acho, esse negócio de mudar é difícil pra caramba, não é assim da noite pro dia, e no fundo ninguém QUER mudar, um relacionamento é composto de duas (ou mais) pessoas, só que fica sempre essa merda de tentar domesticar o outro, eu me recuso a ser domesticado, por isso meus relacionamentos terminam quase sempre assim, eu vou embora simplesmente, não adianta ficar batendo na mesma tecla até gastar o maldito dedo, é simples, ou funciona, ou não funciona.

Depois desse episódio peguei o primeiro ônibus que passou, estava chovendo pra burro, eu tava ensopado, não tinha lugar pra sentar, e as janelas estavam todas fechadas, me senti um legume, sendo cozido no vapor, apesar do frio do lado de fora, a temperatura no ônibus estava insuportável, acabei descendo umas duas paradas antes pra ver se eu parava de suar, e por que gosto mais de frio e chuva quando se esta agasalhado do que de ser cozido no vapor, acho que se eu fosse algum tipo de comida seria um sorvete, não suporto calor, começo a derreter, a suar baldes e mais baldes, nunca conseguiria levar a vida de um legume, da mesma maneira acho que jamais conseguiria viver na Bahia, ou Rio de Janeiro, é simplesmente perto demais do maldito equador, fico imaginando se aquela gente sua o tempo todo, e na maioria das vezes me convenço que sim, mas de qualquer maneira desci algumas paradas antes e fui andando pela chuva, estava chegando perto da perimetral, quando vi uma silueta conhecida em uma parada adjacente, reconheci pelas roupas escuras, e pelos acessórios metálicos espalhados pelo corpo todo. Era o Jean, um amigo paulista que morava em porto alegre também, ótima companhia pra se derrubar uma garrafa de vodka barata, ótima companhia pra diversas coisas por sinal, jogar xadrez, brigar na rua, bater carteira, roubar bebidas, enfim todo e qualquer tipo de atividade que envolva adrenalina pra cacete. Corri até a parada pra evitar que ele entrasse em um ônibus qualquer, ele me viu vindo e já abriu um sorriso, acho que na verdade não estava sorrindo, estava rindo de mim, todo ensopado com o cabelo caído sobre a cara correndo no meio da chuva. Nunca saberei ao certo, e pra falar a verdade também, pouco me importa.

- E ai cara! - disse eu entusiasticamente
- E ai! - respondeu de imediato enquanto já me seguia rumo à Cidade Baixa. Sei que fomos conversando sobre isso ou aquilo, ele me contou como tinha sido maluco o seu dia, e eu convidei ele pra tomar uma vodka comigo antes de ir pra casa, ele obviamente aceitou sem nem sequer pestanejar, agora isso sim é um guri! Fiquei pensando, enquanto falava sobre coisas aleatórias, no rumo que poderíamos tomar. Algum lugar pra se sentar durante uma noite de chuva e beber mais tranquilamente. Passamos num mercado pela Lima e Silva e compramos a bebida e uma carteira de cigarros bem vagabunda, em seguida ele sugeriu que fossemos pra casa de um amigo dele que ele queria me apresentar a algum tempo já, eu havia contado a estória, e ele achando formidável o meu estado de espírito decidiu me apresentar um garoto que ele conheceu numa noite dessas. Atravessamos toda a Cidade Baixa sob uma chuva torrencial inextinguível, eu estava molhado até os ossos e ele também, mas não nos importávamos nem um pouco, desde que não molhássemos a bebida ou os cigarros. Paramos por alguns instantes no posto Ipiranga da João Pessoa, e tomamos pelo menos um terço da garrafa aos martelinhos, enquanto fumávamos alguns cigarros protegidos da chuva, eu já estava achando meio imbecil andar tudo aquilo só por uma foda, mas não tinha nada de melhor pra fazer e decidi continuar com aquela idiotice até o final fatídico, ele começou a me falar do guri que ia me apresentar. Falou que era ateu, que era de São Paulo, que estava aqui estudando filosofia, e que já tinha lido todos os grandes, desde Goethe, Baudelaire e Rimbaud, até Miller, Bukowsky e Burroughs, eu fiquei encantado, achei que ia conhecer uma foda, e no fim estava às margens de conhecer um filosofo. Talvez um poeta! Pedi para irmos duma vez, e ele me informou que era logo na esquina. Fiquei ainda mais excitado, ainda chovia muito forte então sugeri que acendêssemos mais um cigarro antes de ir, e assim fizemos, fumamos descansadamente enquanto a garrafa já chegava a sua metade. Já estávamos um tanto bêbados, mas não o suficiente ainda. Caminhamos então até a casa do guri, que era mesmo logo na esquina, ele tocou o interfone e logo o cara respondeu lá de cima, tinha um sotaque estranhíssimo, meio arrastado o que me lembrou um pouco a Bahia e aquela estória toda dos legumes baianos, comecei a rir já meio bêbado, mas decidi não dizer o porquê, pensando que achariam que sou maluco. Quando o cara veio, eu fiquei ainda mais contente, esperava que ele fosse feio e esquisito, imaginei assim não sei bem o porquê, talvez pela voz no interfone ou pela imagem dos baianos sambando na minha cabeça bêbada, sei que entramos e em nem cinco minutos a chuva acalmara lá fora (lei de Murphy), ele nos recebeu um tanto efusivamente dando abraços e tudo o mais, o que eu achei super estranho, mas não liguei muito já que estava bem na onda da agarrar o guri. Entramos e o seguimos até o segundo andar, ele abriu a porta revelando um nicho cheio de livros e garrafas pela metade atiradas pelos cantos, notei então que ele também estava um pouco bêbado, e fiquei ainda mais contente. Tocava um som no computador em alguma das salas vizinhas, não me dei ao trabalho de verificar em qual por que isso pouco importava, era algo frenético; agressivo; autodestrutivo; auto-indulgência insana; Mindless self indulgence. Como falei às vezes uma língua só é pouco pra expressar certas sensações ou estados de espírito. Comecei a cantar junto loucamente e meio que me chacoalhar em um ritmo febril, o guri foi pegar mais umas cervejas na cozinha, e voltou um pouco depois com duas garrafas e uma toalha, eu e o Jean nos secamos e continuamos a conversar descontraidamente, e a beber é claro. A ligação foi inevitável, em poucos minutos estávamos falando de tudo, música, filmes, livros, pessoas, acho que em certo ponto até contei o que me acontecera mais cedo, não me recordo por que a vodka já estava terminando e só eu estava bebendo ela ainda, Em algum ponto da noite deitamos todos sobre o carpete e ficamos fumando, olhando para o teto, a chuva havia parado completamente e havia um silencio imperioso, a playlist tinha terminado, ninguém tinha coragem de romper aquele silencio. Uma das respirações tornou-se mais alta repentinamente. Eu reconheci os grunhidos do Jean, reconheceria em qualquer lugar, cada pessoa faz um som característico quando cai no sono sem querer, ele não roncava nem nada, só respirava muito alto, como se estivesse transando, e às vezes dava uns grunhidos como uma criatura, imaginei ele na selva, como um animal, numa caverna ou algo do gênero, hibernando quem sabe. Tenho todo o tipo de pensamentos estranhos quando estou muito bêbado, e eu estava muito, mas muito bêbado. Não lembro quem se mexeu primeiro, sei que no segundo seguinte estávamos nos beijando enfurecidamente, eu e o guri, ambos bêbados, fomos para o quarto, a música deixara de tocar, ouvíamos a música dos nossos corpos, os suores, as línguas, as respirações se cruzando no ar, dois corpos insistindo por ocupar o mesmo lugar no espaço, foi ai que eu entendi! O lance de domesticar. As pessoas querem se tornar uma só. É uma espécie estranha de possessão, em que, você não domina o corpo, mas impõe limites a ele, mesmo que não te pertença. Como uma marionete, você não quer um ser humano, genuíno, livre, você quer um brinquedo. Um boneco, alguém que se molde a suas vontades, feito uma argila, uma paranóia meio divina, moldar um ser humano da argila, como se você fosse Deus. Mas não da certo por que o ser humano é basicamente, um amontoado de defeitos e manias, e mudar isso é destruir o que há de humano nele. A disciplina destrói a humanidade, o amor destrói a humanidade, quando tive essa epifania no meio de uma transa, bêbado sobre a cama de um desconhecido, percebi que jamais teria um relacionamento de novo, e por estranho que pareça não senti qualquer horror nisso, soava algo completamente natural e realizável. Quando terminamos a transa, horas depois, voltamos para a sala semi-nus pra fumar uns cigarros e beber mais um pouco. Jean estava sentado diante do PC com o resto de vodka que eu não conseguira derrubar. Acho que tinha fingido adormecer pra que a gente pudesse ir pro quarto ou algo assim, mas nem falei nada. Estava um clima muito bom agora, a música havia voltado a tocar, estava amanhecendo e o céu tinha um tom entre o azul da noite e o amarelo bem claro quase invisível. O guri me convidou pra passar a noite com ele, mas diante de minha recém descoberta nova filosofia recusei educadamente, sem dar explicações nem nada. Ele pareceu um tanto desapontado, mas não reclamou também. Fiquei imaginando se também tinha tido uma epifania semelhante em alguma noite bêbada. Por fim eu e o Jean deixamos o apartamento e fomos pra casa, terminamos a vodka no caminho, e eu levei os cigarros por que sou bem mais dependente deles do que o meu companheiro. Fui pra casa numa nuvem de satisfação, algo de mágico acontecera, em algum ponto da noite, não sei dizer bem ao certo quando. A sim, o nome dele era Rafael.

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