quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

Divida social (crônica)

Se você já leu “O cobrador” do mestre Ruben Fonseca sabe exatamente sobre o que se trata o texto a seguir. Parece que de repente silenciosamente instalou-se uma consciência mutua, uma espécie de distorção de senso comum, aberração da lógica.
Você anda pelas ruas com seus trocados no bolso e alguém te aborda com os olhos molhados de cachorro, e diz algo do gênero – Por favor, preciso só de uns trocados pra comprar algo pra comer, ou pra ajudar em casa – sempre alguma história infindável cheia de desgraças e infortúnios os quais você com sua agenda de cidadão normal não terá a oportunidade de verificar se são verdadeiros ou não, conferindo então uma espécie de inocuidade as palavras do morador de rua, ou do malandro. Senso comum diz: os trocados são meus, e eu não sou rico. Até mais quem precisa de caridade sou eu, que não tenho às vezes pro cigarro ou pra passagem. Ai você alcança ao pedinte algumas moedas, e em quinze minutos ele passa novamente por você com a mesma história sem nem lembrar quem diabos deu a ele os trocados, foram tantos afinal. Ainda assim ele continua pedindo, por que veja bem, Senso comum diz: Se você pedir, eventualmente alguém vai dar. E no fim da noite ele esta abarrotado de trocados, claro ele podia estar roubando, podia estar matando, mas não! Ele esta honestamente pedindo! Como se o fato de não roubar nem matar fizessem dele um super ser humano, uma criatura pia e digna de auxilio imediato. Caso você não de as malditas moedas, porém, ele mandara você a merda, ao inferno, vai te chamar de trouxa e te mostrar um bolo enorme de notas ou um bolso abarrotado de moedas, quem sabe até te roube ou te bata. Quando recebem um não eles se enfurecem. E me diga, se você sair por ai com a mesma atitude, qual será o resultado? Eu tenho um amigo que quando diz um não a um pedinte, simplesmente abre o coração e pede um bilhão de desculpas, algo do tipo – Desculpa, mas é que eu realmente não posso só tenho o dinheiro da passagem e tenho que chegar em casa logo se não meu pai me mata, mas se quiser eu te dou um cigarro, quer um gole de cerveja? Um abraço? – E esse amigo nem sequer entende o absurdo de ter de explicar ao pedinte que ele não vai lhe dar moedas simplesmente porque ele não tem vontade de lhe dar nada. Nem o conhece, não sente a menor simpatia pelo infeliz que ainda vem pedir com um tom inquisitorial como uma ameaça, algo do tipo me de moedas ou arranho seu carro. Faça o teste, pergunte ao flanelinha qual é o seu carro. Diga ao pedinte que não vai lhe dar nada, simplesmente por que não lhe deve nada. Eles ficam sem reação! É um absurdo! Você tem! Você tem e não vai me dar! Se você for pequeno ele talvez até te ameace ou te de uma surra. Sendo grande ele só vai te olhar feio e ir pedir ao próximo idiota, e ao próximo e ao próximo até acumular o suficiente pra comprar uma garrafa de cachaça e umas cachimbadas de crack. Há claro o morador de rua que realmente não tem condições de reintegrar-se a sociedade, doente mental, marginalizado. Mas este não pede, ou quando pede, pede com o tom correto o tom de pedido, sem histórias enooormes e enfadonhas que quase te fazem pegar no sono. Ele pede o suficiente pra continuar existindo.
E fato é que não somos camada privilegiada, a camada privilegiada não anda onde tem pedintes (cruzes que nojo!), somos o próprio proletariado, alguns levemente mais favorecidos outros quase tão pobres quanto os próprios pedintes, e eles nos vêem como os imaculados burgueses, nas nossas roupas novas e limpas bebendo cerveja pelos guetos da cidade.
Aí é que se enganam. Eles vêem que temos um pouquinho de dignidade, e se revoltam por ter isso a eles negado. Como se a culpa fosse toda nossa, e não é!
A culpa é da má distribuição de renda, é dos impostos absurdos, é da falta de assistência de saúde e educação a culpa é de todos nós, desde o mais imundo pedinte até o mais imaculado presidente de câmara. Mas quem é que se fode? Eu! Eu e você!

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quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

Urbano

Árvores estéreis que brotam do concreto
Pequenos bancos assimétricos de madeira
Onde sentam sob o sol gotejante
Famílias inteiras
Fumando seus cachimbos de pedra
Volita em torno de um obá gigantesco
Um ser de éter cavalgando metal polido e plástico
Imerso em pensamentos vãos e vagos
Ouvidos cobertos pela música soando nos fones

Um organismo complexo, quase simbiótico
Mas não se olham, calam e seguem
E já as sete, o mundo todo apodrece
Vermes pulsam esgoto a fora
Contorcem-se ao som das buzinas e a luz dos faróis
Sob o sinal vermelho um cadáver dança
Vestido de homem negro

Monóxido de carbono substitui o oxigênio
Todos olham para o chão, mortos de medo
E a violência e o abandono sente-se no ar
Uma criança revira o lixo a caça de alimento
E a própria lua se tinge de vermelho
Tamanha a podridão e o desespero

Um homem de espartilho sorri na penumbra
Uma mulher dança nua sob o colo de um desconhecido
Um grito ecoa. Um grito de cordeiro novo
Me da um cigarro, umas moedas pro leite,
Pro remédio da minha mulher
Um grito de cordeiro novo
No fundo d’um beco
O pleno som do aborto

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terça-feira, 2 de dezembro de 2008

Uma doença da alma

É terça feira, não sei o dia exato do mês
Dezembro, o verão se esta iniciando
Hoje choveu uma chuva estranha
Intensa, mas que passou logo
Como fosse uma nuvem passageira
Eu limpava a casa, minha casa
E um pensamento me emboscava
Como um assassino sorrateiro
Cercando-me como uma presa
E eu como um animal indefeso não o pressentia
Ele ia circulando sempre acima de minha razão
Ou por vezes abaixo
Movendo-se em círculos
Esperando o momento de emergir
Eu limpava o chão
E como surgindo do nada
Senti uma súbita falta de ar
Um peso no corpo todo
Uma sensação extrema de mal estar
Pensei estar doente quem sabe
Um tanto incrédulo e assustado
Tossi como para expurgar aquele mau augurio,
Deixei meus afazeres por um minuto
Ainda em pé sobre o pano
Imaginando o que haveria de ser
Aquele terrível mal estar repentino
Pesquei dentro dos pensamentos
Que estavam mais a tona
A imagem de alguém
Não era alguém na verdade
Era a memória clara de um momento
Um momento no qual não pensava havia muito tempo
Estranhei-me por relembrar coisa tão remota
Meus olhos encheram-se de água
Mas não sentia o ímpeto tão pouco a vontade de chorar
A sensação persistia cada vez mais sufocante
Afastei-me da parede e andei até a porta aberta
Chovia forte e violentamente
Exatamente como naquele dia
Aquele dia de verão
Te vi sorrindo e sorri também
A sensação foi se dissipando
Quando pensei em onde estaria você agora
Nos braços de outro por certo
Faz tanto tempo
Olhei a chuva com atenção por um minuto
Vi tua imagem feliz ao lado de outra pessoa
Vi a mim também
Feliz ainda que sozinho
(talvez feliz por estar sozinho)
E decidi então chamar esta sensação de saudade
Uma saudade morta
Um estranho desejo de lembrar apenas
Como quem lembra a infância
Sem desejar que ela retorne

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Âmago

Dentro de nós existe um porto
Cada qual com suas maravilhas e quimeras
Gosto de chamar assim este lugar secreto
Pela razão de que, nenhum porto é deserto
Por mais negro e soturno que seja
Sempre são eleitos
Alguns estrangeiros para habitar o porto dentro de nós
Eles chegam e se vão, em embarcações
Oriundas de seus próprios portos
Pois para se conquistar um lugar dentro de alguém
Devemos conquistar primeiro suas águas
Devemos lançar em mares que desconhecemos
Um pouco de nós, para que assim vejamos com nossos olhos
Toquemos com nossos dedos
Averigüemos com nossos narizes e línguas
O verdadeiro sabor que tem a água e a terra deste novo porto
A principio vê-se só a superfície
Das águas cheia de mistérios
Acobertando a natureza das areias abaixo
Ainda secretas a nossos olhos
Á conquista das águas
Pode ser imediata ou trabalhosa
Alguns mares são bravios e tempestuosos
Outros mansos e tropicais
Outros ainda salpicados de rochedos ameaçadores
Alguns tomados de correntes traiçoeiras
Às vezes quando achamos que se vê terra logo adiante
É apenas uma miragem
Um canto enganoso de sereia
Passadas as águas
Estaremos seguros enfim
Sempre cativos desse porto amigo ou amado
Devemos aprender a conviver com seus nativos
Mantendo nossos portos a eles também abertos
Dentro de ti há um porto
E teus olhos são faróis
Que chamam navios as tuas bahias ensolaradas
Tuas palavras são o mar por onde navegarão os aventureiros
Caso desejem realmente conhecer tuas areias
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Paranóias domésticas (crônica)

100% dos acidentes domésticos acontecem dentro de casa, motivo para preocupação, obviamente, já que nos tempos modernos temos como costume morar em casas e passar grande parte do dia e da noite sentados sobre uma bomba relógio.
Claro que não paro pra pensar nisso o tempo todo, mas há coisas que por vezes me assombram os pensamentos e me roubam o sono, quando discorro sobre suas utilidades práticas e seus benefícios e peso-os contra seus inconvenientes e perigos imediatos.
Regularmente uma pessoa de saúde mental estável sente-se segura dentro de casa.
Aí é que ela se engana! Pois é necessariamente neste tipo de recinto e desse tipo de espírito ingênuo que se aproveitam estes embosqueiros assassinos.
A casa moderna esta abarrotado de armas mortais, portanto devemos estar sempre alertas. Na rua, por exemplo, corremos risco de ser assaltados, insultados dentre outras catástrofes cotidianas, porém não se corre tanto risco de ser eletrocutado queimado, esfolado, enfim, vilipendiado de qualquer forma terrível.
Claro que, dentro de nossas casas estamos a salvo de vagabundos, viciados e pessoas agressivas (via de regra), mas o que me preocupa afinal são, por exemplo, as arvores de natal... Sim estas aparentemente inofensivas decorações da data cristã são na verdade ARMAS MORTAIS, prontas a eletrocutar uma pessoa a qualquer segundo sem ao menos sentir remorso ou vergonha de tamanha vilania gratuita.
Aquelas luzinhas piscantes letalmente eletrificadas por uma corrente de 110 a 220 V não servem a qualquer propósito a não ser o de eletrocutar uma criança curiosa (me deixa ligar pai) ou um descuidado chefe de família que por ventura tenha problemas em fazê-las funcionar (considero funcionar uma palavra estranhíssima de se aplicar nesse caso, pois as mesmas não possuem qualquer utilidade).
Claro que estas representam um perigo ínfimo, por fazerem-se presentes somente no mês de dezembro perto da data comemorativa, se comparadas a outras armas mortais como: ferros de passar quentíssimos, chuveiros ELÉTRICOS, microondas com sua radioatividade invisível e geladeiras com suas repentinas crises de mau-funcionamento. E olhem que ainda nem falei dos fogões... Os famigerados cuspidores de chamas que por sua vez já asfixiaram famílias inteiras com seu invisível e sórdido combustível. Repito: FAMILIAS INTEIRAS! E não se trata de paranóia, é uma questão seriíssima. O que aconteceria se por ventura seu chuveiro de uma noite para outra (como estas ratoeiras de homens tem o hábito de fazer) decidisse apresentar um mau-funcionamento na sua simplista estrutura de aquecimento de água movida a eletricidade? (água mais eletricidade, combinação que certamente foi pensada por algum gênio malvado) quem saberia? Permaneceria um silencio funesto até que o primeiro azarado sofresse a influencia cruel e irremediável não do destino, mas sim do chuveiro. Sendo assassinado pela fulminante descarga elétrica sem nem saber o que se passou. Ou quem sabe um idoso que não conheça o correto funcionamento de um aparelho de microondas. Aquecendo metais na máquina radioativa.
Projetando toda aquela irradiação poderosa contra o aparelho e facilmente provocando um incêndio de proporções abissais! Que me dirão da empregada que esquece o quentíssimo ferro ligado sobre o veludo ou pano e causa da mesma maneira um incêndio? E da dona de casa que muito cansada esqueceu-se da boca de gás do fogão aberta?
Então meus caros, atesto que por mim, estes aparatos não são nada além de problema claro que se encontra conforto QUANDO (e somente QUANDO) estes funcionam corretamente. Mas vale a pena viver temendo a cólera dos eletrodomésticos? O que não faria uma batedeira nas mãos erradas?
Podem dizer que é paranóia, minhas opiniões são finais e insolúveis! E me encontro irredutível ao dizer que mesmo a mais singela lâmpada é na verdade o inicio da revolta das máquinas, com seus potenciais sádicos e inconcebíveis. Seus silencio e ausência de uma consciência.
(Neste instante enquanto termino de digitar o texto, meu laptop em um ato de desespero contra a expedição deste aviso tão coerente alertando do perigo que nos cerca desferiu-me um pequeno choque nas mãos, e se isso não servir como prova o suficiente, não sei o que servirá)

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