terça-feira, 19 de outubro de 2010

Auto-retrato

Um bolo de adjetivos, não afinados,
Ritmados ou metrificados
Sarcástico, muito importante
Sardônico, nada empático,
Levemente destoante, vermelho, escarlate
Discretamente berrante
Alto, branco, castanho, encaracolado
Seco, veloz e pesado
Algo engraçado, algo poético
Desigual por todos os lados
Um abalo sísmico, bem pequeno
Tremor essencial, distímia, insônia
Alcoolismo, tabagismo... Café
Onírico e simpático
Justo e nada moderado
Cachorros de rua
E quese fodam os gatos
Músicas e relações místicas com a lua
Ateísmo cego e astrologia pura
Energia, Marte e Júpiter
E um martelo
Temperado por um pó
Branco e granulado
Ou comprimidos esfarelados
Ou inteiros... Ou os dois

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sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Tudo o que eu não tenho

Tudo o que eu não tenho é muito pouco
Me diz um homem na TV, ou às vezes uma mulher
Me dizem que dormir no chão faz mal pra coluna
Me dizem que não ter onde tomar banho faz mal pra pele
Me dizem que morar na rua maltrata os cabelos
Me dizem que não ter dignidade leva a depressão
Me dizem que não ter o que comer cria rugas de expressão
Me dizem que não ter com quem falar leva ao vicio e insanidade
Me dizem que eu não ter ocupação não é mais culpa do governo
Me dizem já a uns anos que não faço parte da sociedade
Me dizem um monte de coisas que não querem dizer nada

Me negam moedas e me negam o pão
Danem-se, dancem macacos
E vão para a igreja, e dirigem carros potentes
E fazem sexo e criam animais de estimação
E almoçam no domingo e cuidam das crianças
Estudam, trabalham, envelhecem e morrem
Eu sou velho também, também gosto de sexo
Também tenho um animal de estimação
Um cachorro feio chamado Pitoco
Ele me lambe as mãos e dividimos o lixo
Digo, alimento

Me disseram certa vez, que fumar crack mata
E eu pensei comigo: “mas mata quem?”
Me disseram também que alcoolismo destrói famílias
E eu pensei comigo: “mas que família?”
Pra ser honesto, sinto mais pena dessa gente que vive enjaulada
Eu deito no asfalto na alta madrugada
Pensando: “pra que(m) serve teu conhecimento?”
“pra onde vai todo esse teu dinheiro?”
E não to nem ai pra quase nada
Por que tudo o que eu não tenho, é muito pouco.
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sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Retrato II

Um homem caminha rápido pela calçada
Desviando-se das pessoas no caminho
Andar marcial, rígido e preciso como uma máquina
Um terno preto abotoado na altura da barriga
Gravata vermelha, apertada contra a garganta
Sapatos pretos, muito bem engraxados
Gordo, porém elegante e impecável
Ele sua sob o sol de Setembro
O cenho franzido sob os cabelos loiros ralos
Olhos azuis claros, com raias vermelhas inchadas,
Fugindo da claridade intermitente
Ele carrega uma pasta lustrosa marrom
Exala um odor de perfume importado
Hálito de uísque e cigarro
Um totem de poder urbano
Carranca de bicho homem

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Retrato I

Um guri caminhando pelo meio da rua
Jeans rasgados nas barras, azuis desbotados
Contrastando com o negro do asfalto
Cabelos crespos mal cuidados cobrindo os olhos
Castanhos escuro, enterrados no chão
Perdidos numa miríade alcoólica
De mil quadros flácidos recortados
Uma garrafa de plástico na mão esquerda
Cachaça barata, pela metade
Dos lábios que sangram, pende um cigarro
Filtro vermelho, quebrado e apagado
Ele descreve um ângulo variável
Enquanto se equilibra de um pé para o outro
Uma argola de metal fosco serve de adorno a orelha
Não há carros, ou pessoas
Só o eco dos passos
E as luzes alaranjadas dos postes
Incendiando o concreto das calçadas

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