segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Máximas inegaveis (conto)

Quando acordei era por volta de umas duas horas da tarde, não lembro com exatidão, me sentia ainda meio bêbado da noite passada, decidi nem sair de casa até o sol baixar. Fiquei curando o porre. Tinha todo um ritual que era quase infalível, consistia em tomar banho, escovar os dentes, tomar um daqueles energéticos que os atletas tomam, pra repor meus eletrólitos e toda aquela merda e comer alguma coisa bem leve. Pronto, estava novo. Até cumprir todas as etapas do esquema passaram-se umas cinco, talvez seis horas, a noite já vinha caindo. Um amigo ligou e disse que tinha combinado com o nosso tecladista de fazer uma noite no apartamento dele, como eu não tinha idéia melhor e já a algumas semanas não conseguia falar com o pessoal da banda, topei na hora. Fiquei esperando ele e combinando com um outro amigo de tomar umas cervejas no nosso boteco de praxe na João Alfredo, o Eletric lady land.
Dois detalhes que talvez sejam de interesse do leitor: primeiro, ninguém tinha um tostão no bolso. Segundo, era uma daquelas noites que cheiram a coisa louca. O clima tava perfeito pra se sair na noite, a exata temperatura em que não se sente frio tomando cerveja ridiculamente gelada. Enquanto falava com o Mario pela internet, o interfone começou a tocar, interrompi a conversa e fui abrir o portão pro Felipe, o baixista da banda que já tinha chegado.

- E ai cara – ele falou enquanto já tirava o paletó e ia até a geladeira.

- E ai. – respondi enquanto já voltava pra frente do PC e terminava de combinar os detalhes com Mario. Ele voltou com duas long necks que tinham sobrado da madrugada passada, e me entregou uma aberta enquanto abria a dele.

- Tem algo de grana meu? – ele perguntou rindo de si mesmo.

- Nem pro crivo. – respondi rindo também.

- O Téo falou que também ta duro. – ele comentou ainda rindo.

- Ta, e a noite? – eu perguntei, sem nem pensar muito em grana.

- O plano é ir pro AP lá. – ele respondeu, encerrando a frase com um longo gole de cerveja, procurou pelos cigarros nos bolsos, acendeu um parando atrás de mim e encarando a tela luminosa do PC.

- Certo, só deixa eu trocar de roupa. – falei já me levantando. Ele tomou meu lugar enquanto eu trocava de roupa e ia apagando as luzes da casa.

- Me da um cigarro ai! Bah! Nem me lembrei! – falei voltando pra perto do computador. Ele estendeu o cigarro pra mim, abrindo a carteira com pouco mais de meia dúzia dentro. “Carlton Red” a quem interessar possa. Fui catando minhas coisas que sempre estão nos lugares mais estapafúrdios possíveis e imagináveis, chaves, carteira (não que houvesse algum dentro mas, enfim) e por fim, meia garrafa de vodka que tinha sobrevivido ao inicio do fim de semana. Taquei a garrafa na mochila e fui indo até a porta.
- Desliga tudo duma vez! – falei impaciente.

- Calma, to desligando... – voltei e chutei o interruptor no estabilizador.
- A ta. – ele disse rindo um pouco, mas só de leve, nada grave.
Fomos descendo os andares e conversando qualquer coisa que não consigo me lembrar agora, e muito provavelmente jamais lembre. Alcançamos o portão de saída, toquei no botão ao lado da parede enquanto ele abria a grade.
- bzzzzzzzzzzzzzz – falou o portão com um leve grunhido de cansaço. Provavelmente de ficar o dia todo sendo manuseado pelo bando de imbecis que me servem de vizinhos. De qualquer maneira descemos a quadra até chegar na rua da Casa de Cultura Mario Quintana e fomos andando rumo a cidade baixa. Atravessamos o centro tomando uns goles curtos de vodka e fumando aqueles cigarros de bicha do Felipe. Chegamos a independência e passamos pelo Bambus que estava ás moscas, exceto por um pequeno grupo de vagabundos, menores de idade, viciados em qualquer coisa que não dou a mínima pra o que venha a ser, seguimos andando e conversando, sem caminhar muito rápido por que também era muito cedo e estávamos um tanto quanto sem rumo até pelo menos uma meia-noite. Tentamos ligar pro Téo, mas o celular só tocava e não atendia nunca, devemos ter tentado um bilhão de milhões de vezes, até encher o saco MESMO de ouvir aquela mulhérsinha que fica te mandando deixar um recado que ninguém escuta (exceto viciados em anfetamina com tempo demais nas mãos) após o bip. “biiiiiiiiip”. Começamos a ligar pra todo mundo que poderia por ventura ter o número do convencional e enquanto isso íamos bebendo vodka bem aos pouquinhos só pra dizer que estávamos bebendo alguma coisa, e fumando aqueles cigarros de bicha que a essa altura já estavam quase acabando. Paramos naquela praça na frente da igreja que fica bem no meio da AV. Independência, decididos a conseguir contato com Téo, ligamos pra todo mundo que conhecia ele, ligamos pra mãe dele, pro pai, pras tias, pra madrinha de casamento, pra puta que o pariu, e nada de conseguir o maldito número, os créditos já estavam pela hora da morte e a gente cansado de ouvir tantos “não sei mesmo”. Decidimos ir á casa do avô do Felipe pra usar o telefone e guardar o restante dos créditos pra uma emergência ou qualquer troço do gênero. Caminhamos até a Av. João Pessoa e atravessamos rumo a José do Patrocínio, indo reto pela República, dobrando e caminhando até quase a Perimetral, uma puta caminhada. Quando chegamos aos últimos dois cigarros o Felipe falou:

- Cara, vamos guardar esses pra quando a gente sentar ou algo assim – e eu concordei com a cabeça por que além do cigarro não ser meu, já tínhamos fumado quase a carteira toda e a noite ainda ia ser comprida.

Entramos de fininho na casa do avô dele, que não tinha pátio, nem cachorro, ele tinha as chaves, o telefone ficava logo no primeiro cômodo e o velho dormia como uma morsa, dava pra ouvir os roncos nitidamente, mesmo estando um tanto longe, diabos... acho que se eu me concentrasse a noite conseguiria ouvir lá da minha cama no meu JK fodido. Eu fui sentando do lado do telefone enquanto Felipe ia na cozinha sorrateiramente, tentando roubar algo de beber da geladeira sem acordar a morsa maluca. O avô do Felipe era um cara muito excêntrico, daqueles velhos bem caducos mesmo, dormia com um 22 do tempo do Zorro embaixo do travesseiro e era cego como uma toupeira, dizem que volta e meia apontava pra qualquer pessoa passando pela casa e falava algo doido do tipo: “IDENTIFIQUE-SE OU ATIRO”. Comigo nunca tinha acontecido e olha que eu freqüentava bastante a casa do velho, normalmente assim, às escuras, com ele dormindo e roncando que nem uma morsa. Bom de qualquer maneira, tentei ligar mais umas vezes pro Téo e nada do filho da puta atender, já tava quase arrancando os cabelos de ódio, fico muito irado quando não atendem telefone, me sinto até meio ofendido, e as vezes nem é culpa do cara, mas eu sou meio louco e como sempre esqueço assim que arranjo algo melhor pra fazer, não faz a menor diferença. Felipe voltou com uma carteira novinha de cigarros que o pai dele tinha esquecido por ali, e a terça parte d’uma garrafa de vinho do porto que tava na geladeira a uns 3 meses quase.

- E ai? Nada? – ele perguntou acendendo o penúltimo dos cigarros dele, e me atirando o outro no colo.

- Nadinha. – respondi com a voz em algum lugar entre o desanimo e a irritação.

- Bom. Foda-se! Ele que vá pro diabo! A gente faz a noite mesmo assim, vamo passa no trabalho do Rodrigo, e convida ele pra ir junto pro boteco – ele falou bastante irritado enquanto já ia saindo, saí na frente e fiquei fumando enquanto ele chaveava a porta. Demos um passo em direção ao portão e o telefone começou a tocar loucamente! Felipe pensou rápido e tascou a chave na porta o mais depressa que pode!
- Riiiiing! Riiiiing! Riiiiing! – berrava o telefone nos ouvidos do mamute adormecido! Um segundo antes de Felipe conseguir atender, o telefone parou de tocar, eu entrei junto pra ver se o velho tinha acordado ou algo assim. Felipe falava ao telefone, com a voz mais macia que conseguira desenterrar na hora, parecia até uma cantiga:

- Já atendi vô... Sim é pra mim vô... Não vô. Não to dormindo aqui... Onze e meia vô... To bem sim vô... Boa noite vô – a essa altura eu já estava me mijando de rir, então saí pra não fazer muito barulho e acabei perdendo o resto da conversa. Ele saiu em seguida rindo também, mas sem fazer barulho.

- Bah! Que cômico, o vô tava tri afim de conversa... – ele falou enquanto girava de novo a chave e trancava a porta.

- Era o Téo? – perguntei indo já para o portão e pegando o cadeado.

- Era sim, ele falou que fumou uma bomba e acabou pegando no sono, mas já ta vindo nos pegar em uma meia hora. Que tu acha de a gente ir buscar o Rodrigo? – ele falou já tomando o rumo da Venâncio e eu concordei só chacoalhando a cabeça e fazendo um sinal com a mão pra ele passar o vinho.

Fomos tomando vinho e caminhando meio rápido até a Venâncio onde o Rodrigo trabalhava, ele era cozinheiro num restaurante bacana pertinho do Bar do Beto. Quando chegamos fomos cumprimentando toda a equipe do bar e pedimos pro Jader, o dono mandar uma cervejinha e anotar na conta, fomos até a cozinha e o Rodrigo já tava lavando os troços quase pronto pra sair.

- E ai meu! – Falou Felipe, se escorando no balcão onde faziam os pedidos. Rodrigo só olhou com cara de bravo e continuou fazendo o que tinha que fazer. Se tem um cara que é mau-humorado, esse cara é o Rodrigo, ele sempre da mil voltas quando a gente pede alguma coisa, principalmente quando o assunto é cozinhar, sem falar no monte de frescura! A gente inclusive brinca que pra ele cozinhar qualquer coisa com creme de leite só se ele mesmo ordenhar a vaca holandesa e bater o creme, e ainda se corre o risco de ele se lembrar de algum detalhe mínimo do tipo: “A! mas essa vaca não é de uma boa safra!” e jogar o troço todo fora cheio de desdém. Mas o ponto positivo disso é que, tudo o que ele faz ou tem, é da melhor e mais incontestável qualidade.

- E ai meu, que horas tu sai hoje? – Perguntei me aproximando também do balcão.

- Daqui a pouco. – Falou ele emburrado.

- Ta! A gente te espera ali fora então. Botamos uma cevinha na tua conta, ok? – disse Felipe com uma cara de deboche que só ele sabe fazer, ao que Rodrigo nem sequer respondeu só ficou ali lavando mil utensílios de cozinha, daqueles que um pobre mortal não faz nem idéia de que existem, e se souber também não faz idéia de como usar.

Sentamos num balcão e fizemos sinal pro Jader trazer a bendita cerveja, não ficamos ali tempo o suficiente pra terminá-la, Rodrigo veio já despido dos uniformes e usando a sua infame gandola e nos ajudou na árdua tarefa de tomar aquela geladíssima antártica original, a quem interessar possa. Ficamos de papo pro ar uns minutinhos terminando aquela cerveja e meu celular tocou, era o número do Mario, Atendi e falei pra ele ir até a esquina da Venâncio com a João pessoa e seguimos todos pro rondevous de praxe. O postinho da Venâncio. Rodrigo no caminho sacou de um tijolo de maconha quase do tamanho d’um punho! E começou a esmurrugar enquanto caminhávamos.

- Caras, acho que não vou mais pra Sampa... – falou ele inconclusivo

- Que houve cara? – perguntamos em coro.

- Bom, primeiro que acabei gastando mais do que devia e to meio com medo de passar necessidade lá e ter que voltar com o rabo entre as pernas – puxou a carteira com uma mão e me deu – pega a ceda – peguei uma e dei pra ele, Pure Hemp, a quem interessar possa. Ele continuou:

- E também me fizeram uma proposta... – falou de novo, sempre deixando lacunas, um hábito que deixava todo mundo louco quando ele contava uma história, na verdade acho que ele esquecia de completar as frases e afirmações, passava o dia todo fumando maconha, pra acordar, pra dormir, pra cagar, comer, tirar o lixo, bater punheta, e qualquer outra sorte de tarefa que se possa imaginar.

- Que proposta? – Perguntou Felipe. Eu fiquei quieto ouvindo um tanto distraído.

- Uma guria que eu namorei a muito tempo disse que vai abrir um bistrô pela cidade baixa, e me falou que ta procurando um sócio. Como eu tenho alguma grana guardada, acho que pode ser um bom negócio. – Ele falou rindo por entre os dentes. Quase escondidos embaixo daquela barba. Que barba! Tinha inveja daquela barba, eu particularmente nunca tive saco de deixar a cara toda peluda, mas a barba dele era algo de se apreciar, bem aparadinha, volumosa, um desbunde!

- Bah! Que coisa bacana! E a gente vai poder beber de graça? – Perguntei já rindo e esperando ele esbravejar ou rir loucamente.
- A! Claro! Leva a tua mãe pra ela pagar a conta, vai aceitar visa, máster e boquete – falou ele rindo como uma hiena.

- Nem duvido! Bem louca! – respondi brincando (ou não).

A conversa continuou enquanto esperávamos os dois faltantes. O Mario chegou primeiro.

- E ai caras. – Falou ele sorrindo, era um cara enorme quase dois metros de altura, era o nosso segurança, e vice versa. Todo mundo cumprimentou e começamos a conversar paralelamente botando todas as novidades em dia.

- Bah! Me dei muito! Tava com menos de um pila no bolso, só tinha aquela maconha de semana passada, e nem pude fumar por que o pai veio passar uma semana aqui também. – Mario não era de Porto Alegre, era Uruguaio mas morava em porto alegre a uns bons quatro anos e quase nem se notava o sotaque. – Daí quando fui sair ele me perguntou como eu tava de dinheiro, mas não falei nada. Ele me deu vinte pila! To rico! – Continuou se rindo todo. Vinte reais é de fato uma fortuna pra quem não tem absolutamente nada na carteira, acredite.

O homem do teclado apareceu uns quinze minutos depois do combinado, mas nem notamos a espera, de tão boa que tava a conversa. Ele tava de carro e depois de todo mundo entrar e se cumprimentar, ele lançou o fatal:

- Pra onde gurizada? – tava com uma cara engraçada, parecia meio chapado ainda, tava até meio catatônico ou qualquer coisa que o valha.

- Eletric lady land né meu?! – falei ascendendo mais um cigarro. Todo mundo assentiu.

O Téo, era o cara mais legal da galaxia, era um pouco mais velho que o resto, amava um bom e velho rock n’ roll, não passava sem uma cervejinha e tava sempre disponível pra maluquices pela madrugada. Ele tinha um DVD pelo qual era pirado chamado “O universo”, todo mundo zoava que tinha custado noventa contos e era uma porra de um documentário do Discovery Channel ou qualquer outro canal que fica jogando informação cientifica mastigada pra leigos vinte e quatro horas por dia. Ele adorava! Vivia corrigindo os outros com afirmações das mais variadas. A pouco tempo o pessoal do escritório de contabilidade onde trabalhavam ele e Felipe tinham feito um passeio de caiaque em algum lugar do Acre, ou Sibéria, ou Três Coroas, Prússia, sei lá, e uma das gurias comentou algo do gênero: “- Nossa que lindo esse pôr-do-sol” ao que ele respondeu no mesmo segundo “BURRA! É UM CREPUSCULO!”.
De qualquer forma fomos até o Eletric lady land, mas a essas alturas já tava fechado. Como estávamos sempre por ali e éramos bem amigos do dono, pedimos pro segurança pra falar com ele e o cara deixou numa boa. Rodrigo entrou e no segundo seguinte estávamos sentados numa mesinha redonda ouvindo Led Zeppelin. Alguém ordenou: - Mostrem as cartas gurizada! – ao que todo mundo puxou todo o dinheiro que tinha e lançou no centro da mesa, tinha uns trinta e cinco contos, o que ali significava cerca de 7 litros de cerveja. A cerveja mais barata da cidade. Polar, a quem interessar possa. Durante o primeiro litro todo mundo conversava um tanto pausadamente, meio que aproveitando pra matar a sede da caminhada e de todas as outras peripécias, já durante o segundo começaram a surgir as máximas incontestáveis. Aquele tipo de coisa que, quando sai da boca de alguém, toda a mesa para de falar e ri até doer o abdome, ou faltar ar, ou desmaiar, enfim “you get the picture”. A primeira se não me engano foi do Mario.

- Sabe esses pesquisadores, que como trabalham com isso e precisam de fundos pra se manterem trabalhando inventam as coisas mais absurdas pra se pesquisar. Bom, um grupo de pesquisadores alemães, ou austríacos, ou sul africanos, descobriram que tomar ducha faz mal a saúde, por que conforme o plástico é aquecido pela água ele libera uma substancia, isso ao longo de um certo tempo é claro... – falou Mario, eu interrompi.

- Quanto tempo? – olhando com atenção.

- Sei lá, uns anos eu acho, mas enfim aquilo se mistura às partículas de água que ficam no ar e é absorvido pelo pulmão causando uma doença do mal lá. – Concluiu Mario.

- Mas nunca ninguém morreu de ducha! – Falei resignado.

- Não tem como saber, pode ter morrido, vai saber – Falou Téo.

- Bah! Vai ver os europeus já sabiam disso a muitos e muitos anos! – Falei, no que todo mundo despencou a gargalhar e encerrou o assunto.

As cervejas continuavam vindo e lá pelas tantas, Téo lançou outra máxima incontestável enquanto uma discussão política começava a surgir de fininho.

- O Brasil é o único país em que além de, puta ter orgasmo, cafetão ter ciúmes, e traficante ser viciado, pobre é de direita! Tim Maia. – Concluiu ao que toda a mesa despencou em risadas encerrando também essa discussão.

Lá pelo quinto litro, foi a vez do Felipe lançar sua máxima incontestável. Eu falava alguma coisa sobre cinema, e não conseguia me lembrar do nome do filme ou do ator ou da história e comecei a falar um trecho que eu me lembrava já meio bêbado e tudo.

- ta entra um cara mega gordão num restaurante e tudo mais, ai... não espera ai... acho que isso é antes... ta, sei que tem um lance na praia que pra entender a cena... puts, ta imagina um pôr-do-sol! – ele me interrompeu no mesmo segundo berrando!

- BURRO! É UM CREPUSCULO! – ao que a mesa toda novamente desatou em gargalhadas encerrando mais um assunto inacabado.

Mais dois litros se passaram sem máximas incontestáveis, já estávamos bem chumbados e decidimos dar uma volta de carro pra estourar o baseado que Rodrigo tinha fechado. Entramos e Rodrigo sentou bem no meio do banco de traz, começamos a dar umas voltas primeiro pra perder aquela sensação de perigo que se sente na João Alfredo e quando estávamos pela perimetral ascendemos o troço. Fumar dentro de um carro é uma experiência única porque cinco pessoas dentro de um cubículo mal ventilado com um baseado queimando torna tudo além de mais engraçado, mais poderoso, como fumar um cigarro com um aquário na cabeça, tu solta a fumaça, mas ela continua ali. Lá pelas tantas quando já estávamos bem chapados, Téo falou que ia parar pra abastecer. Rodrigo tinha sentado no meio como falei antes, e como bom maconheiro experiente sabia que o baseado ia passar por ele duas vezes a cada volta, nós nem tínhamos notado. O frentista ia abastecendo e olhava pra dentro do carro rindo. Todo mundo ficou um pouco constrangido mas nada de grave, a chapadeira ajudava a superar qualquer pudor. No entanto o motivo pelo qual o frentista ria não era por ter um monte de maconheiros fumando dentro de um carro, foi o motivo que constituiu a penúltima máxima incontestável! Na metade do abastecimento ele botou a cabeça bem perto da janela e falou pro Rodrigo:

- É o Romário então! Não passa a bola! – e riu ainda mais.

- Que? – perguntou Rodrigo sem entender.

- Já to quase terminando o abastecimento e o Romário não passa a bola! Bah! – e desatou a rir, obviamente quando nos demos conta do que ele tinha falado também rimos até nos mijarmos um pouquinho. Quando o carro já ia embora o frentista ainda falou:

- Passa essa bola Romário, os outros também querem jogar! – E foi rindo fazer o próximo abastecimento.

A ultima máxima foi despejada novamente por Felipe, que ao ver um carro da guarda municipal ficou todo malandro e falou:

- Ó os home Téo, da um tempero ai dos meu! – E ainda depois de ver que não se tratava da brigada militar e sim da guarda municipal completou o soneto com: - A é só os municipal, vai se foder, eu cago nesses municipal! – Ao que também todo mundo desatou a rir desesperadamente.

Teodoro levou cada um pra sua casa, e foi pra sua também, encerrando mais uma noite com cheiro de coisa louca. No dia seguinte, ninguém lembrava da noite inteira, e fomos todos conversando e pesquisando até acharmos um denominador comum no meio de toda aquela fumaça e doideira. E a ressaca, eu curei com uma espécie de ritual...

...
(pra todo mundo que me conhece, ou não)

quarta-feira, 26 de agosto de 2009

Lady Raíssa (conto)

André sempre foi diferente. Aos nove anos o pai pegou ele no quarto, provando calçados e calcinhas, e bateu tanto nele que era de se imaginar que nunca iria acontecer de novo, ele parou no hospital com umas costelas fraturadas e uma concussão, deu até conselho tutelar, mas no fim acabou voltando pra casa mesmo. Sempre preferiu brincar de coisas mais femininas, bonecas e casinha, coisas de mulhersinha, mas a partir desse dia teve que brincar escondido, não era uma tarefa difícil porque o pai nunca estava em casa, sempre bebendo pelos botecos da vila, e a mãe trabalhando quase 24 horas por dia pra sustentar a família grande. Aos doze já tinha todo um jeitão diferente até de caminhar e de falar, e ficava se perguntando por que não era igual aos outros meninos, também sabia brigar e correr atrás de bola, só não gostava, não particularmente. Ficava tentando entender porque todo mundo tratava ele tão mal e chamava ele de maricas, veado, queima rosca e inúmeros outros apelidos. Tinha só um amigo, e eram amigos em segredo, saiam pra brincar separados e se encontravam numa sanga um tanto longe da vila, era um outro guri que também gostava de meninos, mas por algum motivo não tinha todo aquele jeitão, era um pouco mais velho que ele, talvez dois anos ou mais, se chamava Raí. E aquela era a única forma de carinho que André conhecia, até então pelo menos. Um fim de tarde ele foi assistir os outros guris jogarem bola no campinho, gostava de ver o Raí jogando, mesmo sendo humilhado e sempre acabar levando umas bofetadas e empurrões, ele nem se importava mais, depois de um tempo já tinha parado de chorar e de sentir quase qualquer coisa, ficava ali mergulhado em apatia, assistindo atentamente todos os movimentos do Raí, seu único amigo, uns outros meninos acabaram notando que ele seguia Raí com os olhos, com um olhar carregado de paixão, paixão adolescente. Começaram a comentar, a tirar sarro, fazer zueira. Raí não disse nada, a gritaria continuou até que Raí simplesmente teve que reagir, ou seria também taxado de veado, bixa, queima rosca. E ele reagiu, marchou até a beirada do campo e lhe enfiou umas porradas na cara, derrubou André no chão, chutou, etc. E André que achava que não conseguia mais chorar, descobriu que conseguia sim. A despeito desse episódio, eles continuaram a se encontrar na sanga, mas agora era diferente, tudo era diferente, não era mais carinho, era ódio, era uma paixão cheia de ódio. Isso se seguiu por anos, até que um dia, alguém viu, viu os dois no meio do mato, um encima do outro. Não demorou muito pra todo mundo ficar sabendo, não demorou muito pro pai do André ficar sabendo, e quando soube, esperou o filho sair de casa, e o seguiu até a sanga sem que esse notasse, esperou os dois tirarem as roupas, bêbado e bêbado de ódio e reprovação, saltou do esconderijo, facão em punho.
Ninguém nunca mais viu o Raí. André ficou com uma cicatriz no meio da cara pro resto da vida. Uma marca larga de facão. O pai dele deixou ele ali agonizando, André não morreu, não fisicamente pelo menos. Também não voltou pra casa, passou a morar na rua junto com um bando de outros meninos que meio que o salvaram, estavam indo se esconder na sanga pra fumar pedra, e viram um piá atirado sangrando, fizeram o que podiam pra conter o sangramento, quando André acordou estava no meio deles. Moravam na rua, se conheciam de vista, da vila, entre eles ninguém era melhor que ninguém, eram como ratos, sub-humanos, comiam lixo, fumavam crack embaixo das pontes do centro, roubavam, se prostituiam, o que desse na telha. André começou a conhecer a zona da Farrapos, compravam droga de um traficante meio paranóico e completamente psicótico, mas pra André isso não bastava, ele queria mesmo é se vingar, se vingar de todo mundo, se tinha um canivete ou arma na mão, era sanguinário, não ia atrás do dinheiro, ia atrás da vingança. Mais dia menos dia teve que bater de frente com o traficante por causa de uma divida d’um outro menino do bando, pouco mais novo que ele, o traficante chegou no galpão onde eles dormiam metendo chumbo pra tudo que era lado, uns guris morreram, os mais novinhos, outros fugiram, mas não André, ele ficou ali, se escondeu atrás de um barril daqueles grandes que se usa de lixeira, não tinha arma, só um pedaço de vidro quebrado que achou no chão na hora. Esperou o traficante dar as costas e enfiou quase 10 cm de vidro pra dentro da garganta do cara. O cara sangrava feito um porco, morreu ali mesmo, não levou 5 minutos pra morrer de hemorragia. André revistou os bolsos do filho da puta, e achou um monte de notas trocadas, umas três balas de revolver, e uma pedra enorme de crack. Dali pra diante André deixou de ser André, ele era o cicatriz. Se tornou traficante, conhecia as ruas e as pessoas como a palma da mão, foi fazendo fama e fazendo grana, não tinha nem 15 anos quando alugou o primeiro quarto num hotel barra pesada da Voluntários. Tinha dinheiro na mão, tinha nome na rua. Tava sempre trocando chumbo com traficante e policia, mesmo assim, ainda era aquele gurisinho, que gostava de brincar de boneca e se esfregar em outros gurisinhos. Começou a freqüentar a noite, a conhecer gente como ele, em certas noites se sentia quase parte daquilo tudo, como se finalmente tivesse encontrado o lugar onde não era diferente. Comprou umas roupas bacanas. Com dinheiro na mão se vestia cada vez menos de guri, e então de uma semana pra outra como por passe de mágica, André finalmente deixou de existir, ele dava lugar pra outra entidade, uma entidade amável e corajosa. Nascia Lady Raíssa. Uma noite numa boate barata na Cristovão Colombo, conheceu um homem bem bacana que também era traficante. O nome dele era Jesus, e tratou André como ninguém jamais tinha tratado antes, com carinho de verdade. Na mesma noite em que se conheceram, terminaram no quarto de André, se amando até amanhecer. Começaram a se ver diariamente, se ajudavam em todos os aspectos e gostavam mesmo e cada vez mais um do outro. André se sentia feliz como não era a muito tempo. Ninguém falava nada, ninguém mais chamava ele de veado, de isso de aquilo. Ele era respeitado, ele era mais do que respeitado, era temido, tinha conquistado seu lugar no mundo a bala e ponta de faca. O que fazia com quem devia grana de droga já tinha virado lenda urbana, seu "marido" também não era lá muito piedoso, tinha tido uma história em alguns aspectos até pior que a de André. Faziam uma dupla engraçada, André um negro alto com o corpo quadrado encolhido dentro daquelas roupas de mulher, e Jesus um alemão bem baixinho e desdentado. Num domingo quando circulava pelas bandas da lima e silva atrás da clientela, André se viu numa rua deserta e ouviu um grito vindo de trás. Quando olhou viu um carro vindo rápido na sua direção “não é os home” pensou consigo mesmo, precipitou o caminhar pra encontrar algum lugar mais movimentado achando que fosse algum outro traficante querendo disputar ponto, mas no segundo seguinte quatro neo-nazistas saltaram do carro e o cercaram. André tentou sacar o canivete de dentro da bolsa, mas um bastão o atingiu na cabeça, eles o lincharam, estupraram e fugiram rapidamente sem deixar rastros ou testemunhas. André se levantou se apoiando na parede, sentindo o sangue escorrer pela boca, se recompôs e tomou o rumo de casa, o cu sangrando a cabeça a mil, a falta de ar que sentiu aos nove anos, quando o pai lhe quebrou as costelas. Antes de voltar pra casa ainda passou num mercadinho e comprou uma garrafa de cachaça, foi desinfetando os ferimentos conforme andava. Chegou no quarto de hotel depois de andar meia Porto-Alegre. Tomou um banho e esperou Jesus que foi chegar só umas horas depois, querendo mais crack pra negociar na rua. Quando Jesus o viu, com o olho roxo e a boca cortada foi tomado por uma fúria assassina. André disse pra que não se preocupasse, que eles iam pagar de uma maneira ou de outra. Jesus telefonou pra alguns ratos atrás de qualquer informação a respeito dos carecas. Um punk amigo dele falou que tinha visto uns carecas de carro no Parcão á pouco tempo, quando André ouviu isso se levantou da cama mecanicamente e saiu seguido por Jesus. Pegaram a brasilia velha, que só usavam pra serviços, André colocou no porta-malas um galão de gasolina que tinham guardado, sem dar qualquer explicação. Rumaram pro local indicado o mais rápido possível. Quando chegaram nas proximidades, desceram do carro pra não chamar atenção, as armas na cintura, Jesus bufava de ódio. Encontraram depois de uma hora quatro carecas encostados num carro tipo, não fizeram nada, só ficaram de tocaia. Aproximadamente uma hora depois começaram a se dispersar, dois subiram no tipo e os outros dois foram cada um pra um lado, André e Jesus seguiram um dos rapazes até o ponto de ônibus, deram-lhe um tiro no joelho e o arrastaram aos gritos até a brasilia. Levaram o guri até a beira do Guaíba, Jesus tirou o careca pra fora do carro a coronhadas, gritando ordens, alucinado, quase ininteligível, o garoto chorava, estava todo mijado, babando e implorando pela vida, André que até então estava apático, apareceu com uma chave de roda, e um a um estraçalhou os ossos das pernas e braços do rapaz. Seu olhar mudara, tinha voltado nesse instante a ser Cicatriz, o assassino voraz. Jesus queria matar o guri, mas André disse que não e arremessou o careca pra dentro da brasilia, olhou nos olhos do guri, fixamente, sem resquício de qualquer sentimento, e perguntou com toda a calma, onde moravam os outros. O guri falou na mesma hora. André cobriu a boca do careca com uma meia calça que estava jogada por sobre o banco e Jesus guiou até o primeiro endereço. Era um apartamento na Oswaldo quase entrando na Protásio, desceram do carro com uma velocidade assustadora, como predadores cercando a presa, saltaram o portão e renderam o porteiro, fizeram ele levar os dois até o apartamento certo, chutaram a porta, o rapaz ainda estava acordado deitado sobre o sofá, tocaram o porteiro pra dentro. Enquanto Jesus mantinha os dois parados com a arma. André encharcou de gasolina toda a mobília, foi tudo muito rápido, o careca até tentou reagir, mas Jesus disparou duas vezes contra ele e esse caiu sentado, os pais do garoto vieram até a sala só a tempo de ver Jesus correr porta a fora e acender o rastro de gasolina com um isqueiro “bic”. Seguiram pro terceiro endereço, não conversavam, Jesus ainda furioso olhava pela janela com os olhos molhados e mordendo a mão, estava preocupado, sabia que cedo ou tarde dariam de cara com a policia e a coisa podia engrossar pro lado deles. André parecia tomado de uma calma angelical, sua mente estava clareando, ainda não tinham terminado. A outra era uma casa grande lá pelos lados do Partenon, invadiram pulando o portão, um disparo contra a fechadura, um pé na porta. Entraram quebrando tudo, tocando tudo pro chão. O rapaz não estava em casa ainda, então eles só mataram os pais que despertados com o alvoroço não tiveram nem tempo de implorar pela vida. Mancharam de sangue as paredes e atearam fogo nos cadáveres. A essas alturas, o guri que estava no banco de trás agonizava, delirando de dor. André e Jesus o levaram de novo até a beira do Guaíba e o estupraram até a morte, celebrando a chacina depois na maloca d’um primo de Jesus, perto do morro da Tuca, com cachaça barata, amor e crack. Entraram madrugada a dentro fumando e bebendo.
Voltaram pro centro uns meses depois, quando a poeira já tinha baixado, passaram um mês retomando a velha rotina, encontrando clientes saindo pras festas. Até que uma madrugada, bem perto do amanhecer, por volta das cinco e alguma coisa, Jesus achou ter ouvido um ruído no corredor, catou o revolver e ficou muito alerta. André falou pra ele parar de viajar e ir deitar um pouco, enquanto pintava as unhas roídas e quebradas pela milésima vez naquela madrugada, Jesus então pensou ouvir uma voz, apontou a arma pra porta e deu dois disparos se afastando rapidamente, a porta foi arrombada por uma perna fardada, o policial caiu ao chão sangrando pelo disparo, apenas um o atingira no pescoço, outros três entraram atirando, as balas de Jesus haviam acabado, ele se apressava em encontrar mais projeteis pela extensão visível do quarto, “oficial ferido” uma voz falou, uma saraivada de disparos arremessaram Jesus janela a fora, André tentou ampará-lo antes que esse caísse pela janela, mas foi detido por três policiais, algemado, brutalmente torturado, e eventualmente morto.
O oficial baleado no pescoço era pai de um dos neo-nazistas.

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terça-feira, 18 de agosto de 2009

Frenzy

Ela derrubou um helicóptero
Com uma arma de assalto
Tocou fogo na casa
Arranhou as paredes
Até arrancar as unhas dos dedos
Passou dias deitada, sem falar nada
Nadando no lixo, sorvendo lagrimas
As mãos ainda ensanguentadas
Passou um semestre pensando em suicídio
Suicídio é um nome bonito
Pra cocaína, valium e vodka barata
Ela começou a andar e não parou mais
Andou até morrer de exaustão
Sob um sol de 40 graus no meio do Cairo
Ela se atirou da Torre Eiffel
E de um edificio de 60 andares no Japão
Ela sequestrou um avião
E atirou ele em duas montanhas de dinheiro
Devorou uma banana de dinamite
Engoliu um fósforo asceso
Começou aulas de yôga
Arranjou um emprego
Matou toda a família e fez um banquete
Picou a mãe e o pai pra recherar os torteletes
Torteletes de gente
Ela descobriu uma nova religião
Fazem orgias e bebem sangue de galinha
Deixam despachos nas esquinas
Ascendem velas, são todos ateus
Ela escalou o Evereste
E morreu uma múmia gelada
Embebedou o capitão
Fez ele jogar o navio contra uma pedra enorme
Foi pra uma ilha deserta
Passou meses falando com uma bola
Fugiu da prisão
Deu a volta ao mundo em 90 dias
Sentada em frente a televisão
Comendo restos de restos
Com semanas de idade
Ficou gravida e abortou
Só pra ver qual era a sensação
De ter vida arrancada das entranhas
Vomitou uma massa cinzenta, disforme
E chamou aquilo de "agora"
Vida bruta, visceras dilaceradas
Flambou o destino com cogumelos alucinógenos
Colocou tudo o que conhecia num funil
Bebeu e explodiu
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pra pirada da Jessie

segunda-feira, 3 de agosto de 2009

O Signo Humano

Taurinos irredutiveis
Escorpianos cheios de regras sutis
Sagitarianos maltrapilhos
Aquarianos cheios de planos
Velhas no leito de morte
Velhas que fedem a sonho morto
Vidas acabadas cheias de feitos esquecidos
Cheias de magoas
Palavras irremediaveis que deixamos para traz
Voltarão para nos assombrar qualquer dia desses
E nesse dia vou lavrar minha pele
Com o aço de uma navalha velha de barbear
E vou cortar tão fundo
Que nem os pesadelos vão importar
Só o que existe sou eu
Eu e minha dor, nessa carne rasgada
Nesse sangue que suja o chão agora
Agora
Seres humanos, somos todos seres humanos
O bebado, o vagabundo, o viciado
O rico e o pobre, tão humanos
Tão mortais
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Junky's Christmas

You're one of god's special litlle people
Look at you, so proud and straight
So clean from the shit that runs on the streets
Mommy's pretty treasure
You're so cute and smart, so fucking flawless
You're never wrong, even when you are
You have always some extra money
To write up some more names in your phone book
Or pay a round of expensive alien beer to your smart and clean friends
You've never been on your on, with nothing in your pocket
Except maybe some dope or hash to keep the buzz going
To keep you from going insane
Your nose is always clean
Your head is always clear
So you can see me
So you can watch your back
When I pass by looking you in the eye
Tell me how does it feel
to be so fucking better than me
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domingo, 7 de junho de 2009

Poetas

Ele mora num apartamento de fachada velha
Cheio de velhas, cheias de gatos
Ele anda sempre com uma mochila enorme
Fones nos ouvidos
Ninguém ali sabe seu nome
Ele trabalha numa loja de livros
E nunca fala nada
Conhece de cór a obra de cada um
De seus autores favoritos
Ama aquela loja como quem ama a pessoa amada
De modo um mistico
Toda manhã quando entra
Toma o chimarrão e folheia algum livro velho
De algum poeta velho
Ele escreve também
Mas nunca mostra a ninguém
Escreve pequenos poemas
Numa caderneta amassada que leva no bolso
Quando esta no ônibus ou andando pelas ruas
Ele tem muitos amigos
Que também escrevem pequenos poemas
E andam pelas ruas
E folheiam livros velhos
E amam tão intensamente
Quem nem nas palavras, nem nos poemas
Encontram maneira de expressar
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terça-feira, 5 de maio de 2009

16 Quadras

Te deixo na porta de casa
Pra não teres de andar sozinho
No frio da madrugada
O silêncio devora o beijo
E minha respiração
Meus passos ecoando no asfalto molhado
Parecem fora de compasso
Um tapa na cara da noite
16 quadras de silêncio
Viro esquinas, me perco em ruelas
Um bilhão de casas fechadas
Nem carros, nem gente, nem nada
Um mar escuro
Cheio de palavras pintadas
Caminho só 16 quadras
Pra te deixar na porta de casa
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terça-feira, 7 de abril de 2009

Curriculum Vitae (conto)

Vou te contar como é: Tu acorda por volta das 11 horas da manhã talvez um pouco antes ou depois, e passa o dia todo fazendo alguma coisa, qualquer coisa, tipo a tua rotina, ai quando chega a noite e tu ta razoavelmente cansado, tu te deita e tenta dormir. Aí começa tudo, depois de cerca de meia hora tu percebe que ainda não ta dormindo. Então, determinado a dormir decide ler algo pra ver se pega no sono com mais facilidade. E BAM! Bem assim quando tu menos espera, são seis da manhã, ta amanhecendo e tu já devorou meio “rumo ao farol” da Virginia Woolf aquela cabrita maluca. E aí? E aí tu acaba de ser sorteado na loteria dos fodidos, acaba de ganhar um premio que, não tenha duvida, vai ser teu pro resto da vida! Bem vindo ao bosque dos suicidas, o terceiro circulo do inferno, parabéns, tu é uma porra de um insone! Os estágios são facilmente identificáveis, primeiro há a fase um. Negação: Tu te deita na cama na hora de costume e mesmo estando podre e exausto por estar a já 24 horas acordado, não consegue dormir. Tu entra em negação e concentra toda a tua força de vontade no simples propósito de ficar inconsciente por algumas horas, só para reorganizar o cérebro ou algo assim, mas nada disso. São 6 da manhã novamente, e o mais próximo do sono que tu conseguiste chegar foi uma série de pensamentos confusos se acavalando no teu cérebro como uma espécie doentia de slide show da tua vida. No terceiro dia enfim chega a redenção, tu ta tão exausto e tão exaurido física e mentalmente que começa a ter pequenos surtos narcolépticos, e a cair no sono no meio de qualquer coisa que esteja fazendo. O engraçado é que quando tu acorda aproximadamente 10 ou 15 horas depois, tu ta imprestável, mais exausto do que quando tava acordado a três dias consecutivos. Além disso, quando tu não dorme, teu cérebro como mecanismo de defesa e auto-preservação bombardeia tuas sinapses nervosas com dopamina, endorfina, adrenalina, serotonina, cocaína, cafeína, efedrina e qualquer outra porra que ele tenha disponível pra liberar, ou seja, tu vira um maníaco-depressivo-bipolar. A falta de sono pode por qualquer filho da puta a ponto do suicídio. Depois de umas três semanas repetindo essa rotina, acredite, tu acaba mesmo pensando em meter uma cartela de antidepressivos goela abaixo, ou uma porra de uma bala bem no meio dos olhos, e ao mesmo tempo toda essa porra liberada no organismo te da momentos de plena alegria e desapego. Pronto, você é o Kurt Cobain, ou quem sabe a minha mãe! É aí que entra a fase dois. Falsos alarmes: depois de pelo menos um mês de tentativas é provável que tu consiga regular teu horário e dormir satisfatórias seis ou quatro horas por noite, até que... BAM! Mais três malditos dias sem dormir. Não soa tão “fabulous” ter insônia agora não é? Você recorre a ajuda médica, espiritual, monetária, você chama a sua mãe, chora, grita e mesmo assim... Nada. Todas as drogas e terapias pelas quais tu podes optar vão te levar a um caminho lento até a cura, e por lento eu quero dizer “over the years” e o que você realmente quer: uma boa noite de sono. Bom isso meu amigo, ta completamente fora do teu alcance. É precisamente ai que entra a fase três. Aceitação: Tu simplesmente aceita que regular teu sono ta completamente fora do teu alcance e procura ficar acordado e produtivo a maior parte do tempo, ou seja, tu desiste de dormir, até que literalmente teu cérebro tenha um meltdown e desligue por conta própria.
Isso foi só um prólogo pra explicar o estado em que me encontrava naquela manhã em particular. Fato é que, com insônia ou sem insônia, a vida continua e as contas continuam vindo. Eu tava desempregado, pela primeira vez em meses. Me botaram pra rua porque me pegaram babando no banheiro num dos meus ataques narcolépticos inesperados, não teriam me demitido não fosse a mulher da limpeza ter dito que me encontrou drogado no maldito banheiro. Enfim eu tava novamente duro e tinha um aluguel e uma porção de contas pra acertar. Os dias iam passando e o maldito telefone não tocava me chamando pra qualquer entrevista. Além de não conseguir dormir ainda tinha tempo demais nas minhas mãos, ou seja, a beira da loucura. Já eram 6 da manhã novamente não sei bem de que dia, ou de que mês, sei que amanhecia novamente. Eu tomei alguns baldes de café antes de sair de casa, fumei alguns milhares de cigarros também, começava a esquentar e eu fiquei imaginando que dia terrível ia ser pra se estar dentro de um ônibus. Não que eu tivesse qualquer outra escolha, mas tava imaginando com antecedência como se passaria o dia, e realmente desejei do fundo do meu coração que Deus tivesse piedade e eu encontrasse uma AK-47 caída na primeira esquina pra poder ir fuzilando algumas pessoas no caminho ou quem sabe alguns jatos se caso algum inventasse de voar por cima da minha cabeça. Ensaiei sair de casa, como sempre faço pra ter certeza de não esquecer nada, quando dei o quarto ou quinto passo porta afora me dei conta de que esquecia meu celular e retornei pra pega-lo e tomar mais uma xícara de café de saideira. Desci três andares pelas escadas tomando muito cuidado pra não dar de cara com nenhum vizinho e ter de trocar cordialidades estúpidas, meu humor tava péssimo, ficava imaginando cenas de massacre continuas, algo do tipo responder ao “bom dia” do S. Evilazio com um cruzado de esquerda pra deslocar o maxilar daquele velho fodido, depois algumas ceninhas rápidas como entrar no apartamento dele e cagar bem no meio da sala de estar, quem sabe atirar merda na esposa dele caso ela aparecesse. Dizendo algo maluco do tipo “Olá D. Marta, belo dia pra dar uma cagada bem no meio da sua sala não?”. De qualquer maneira quando despertei dessa alucinação (tão doentia que me fez rir um pouco alto demais), notei que já tava no térreo e a caminho da parada de ônibus, pronto pra enfrentar a massa de podridão que iria me devorar assim que eu botasse o pé pra fora do prédio. A parada tava lotada, o que me fez imaginar que dia da semana seria, esperava que fosse quarta, sempre há alguma coisa acontecendo nas quartas, pensei em pra quem eu ligaria quando aquele pesadelo tivesse terminado. Talvez pra Juliana, ela sempre tinha algo de novo e interessante que me mantinha distraído o suficiente pra não bater com a cabeça na parede até que ela explodisse, algo como um filme realmente demente ou algum vídeo mal gravado da ultima festa de rock da galera, algo assim, quem sabe algum poema novo ou conto que ela tenha escrito. Na verdade eu só queria ir pra casa e dormir, soava como um plano fantástico, se eu não estivesse no meio de uma crise de insônia é claro. Quando me dei conta ao despertar dessa nova fantasia tava já quase na parada em que deveria descer. Era num shopping um tanto afastado do centro, havia passado por ali alguns dias atrás, antes nem mesmo sabia que havia uma livraria ali (não sou muito fã de shoppings), de qualquer maneira desci imediatamente, nem reparei nas pessoas sentadas no ônibus, certamente haveria alguém repulsivo o suficiente para extrair parágrafos de lirismos decadentes, sempre há alguém suficientemente repulsivo dentro de um ônibus. Da rua tentei encontrar quem seria a criatura vencedora, o mais promissor que consegui encontrar olhando de relance foi o cobrador de meia idade, careca, gordo e com a unha do dedinho comprida, era um espetáculo, se o ônibus não disparasse tão imediatamente, poderia desmembrá-lo em pequenos pedaços e saborear cada parte podre ou ridícula em que pudesse por meus olhos, deixando meu desprezo escorrer por sua careca lustrosa, por cima da sua barriga flácida e tudo mais. Quando despertei desse novo sonho percebi que eu tava na parada já a quase 5 minutos, parado, estático, olhando para onde fora o ônibus, chacoalhei a cabeça pra ter certeza de que não iria cair no sono ali mesmo e fui indo em direção a livraria. Quando entrei vi uma prateleira com volumes de bolso e dei uma rápida olhada pra ver se encontrava algo de meu gosto. Tentei sondar o lugar antes de me aproximar de qualquer atendente. Era uma livraria imensa, com um ar industrial, gélido e estéril. Avistei uma senhora mais velha usando roupas bem sóbrias e com um crachá diferenciado, já sabia com quem falar, mas antes me aproximei de um dos vendedores, era um cara um pouco mais baixo que eu com um daqueles olhares estúpidos no rosto, parecia-me que ia começar a babar a qualquer instante, mas não começou, me olhou e me cumprimentou como se eu fosse um freguês, com aquele aparelho ortodôntico brilhante na boca amarela, repulsivo como só o bicho humano consegue ser. Perguntei a ele em que prateleira poderia encontrar alguma coisa da geração “Beat”. Ele me olhou com ar estúpido e perguntou “Beatles?”. Eu ignorei a resposta e perguntei se eles tinham algo de “Les decadent”, comecei a lançar nomes a esmo pra deixar ele maluquinho, “Le peintre de la vie moderne, Une saison em enfer”, ele ia ficando tão confuso que começou a ficar vermelho e foi pra trás de um computador pra pesquisar os títulos que eu falava sem parar. Eu estava deliciado por poder humilhar aquele coitado e fazer da manhã dele um inferno, mas logo me cansei e ele também e acabei pedindo pra falar com a gerente, ele ficou desconfiadíssimo, pensou que eu ia reclamar dele ou algo assim, mas tranqüilizei o imbecil dizendo que só queria entregar um currículo e nada mais. A mulher me recebeu muito bem, quase não conversamos, falei que tinha interesse em trabalhar com eles e ela deu uma olhadela rápida no meu currículo dizendo que me ligaria assim que algo surgisse. Pelo olhar esquivo dela e o tom da voz cheguei a conclusão de que ela jamais me chamaria, pelo menos não nessa encarnação, e quanto a próxima tenho planos de voltar como qualquer animal irracional, por que convenhamos, as coisas são bem menos complicadas, embora com a minha sorte certamente vá acabar na parede de algum caçador alucinado ou virar sabão em um canil. Enfim parti para a segunda livraria, que era do outro lado da cidade, e dessa vez saboreei o ônibus como nunca, o calor estava insuportável, e eu naquelas roupas apertadas de procurar emprego só queria tirar os sapatos e dormir ali mesmo. Uma senhora muito gorda sentou do meu lado, suava como uma porca. Era horrível, após algum tempo comecei a resmungar algumas coisas sem sentido como um lunático pra ver se ela se assustava e levantava ou pelo menos se afastava um pouco de mim, mas, simplesmente, não havia espaço o suficiente! Depois de uns quinze minutos resmungando blasfêmias decidi desistir, até por que o tom de voz excessivamente baixo em que eu falava e os três bilhões de cigarros que já havia fumado estavam irritando pra cacete a minha garganta. Algumas paradas depois decidi me levantar, ou chegaria ensopado na próxima loja, além do que, a velha gorda começou a cheirar esquisito depois de algum tempo no sol. Fiquei com medo que de dentro daquela banha toda emergisse um bebe assassino faminto por gordura, ou algo vindo do espaço, mas graças a Deus nada saiu de dentro daquele receptáculo cornucopial de fast-food. Quando acordei desta outra fantasia já havia passado da minha parada, teria que andar um bom pedaço de volta até a outra livraria, mas nem me importei só queria mesmo era dar o fora do maldito ônibus. Fui caminhando bem devagar e acendi outro cigarro no caminho pra ver se eu parava de tremer como um alcoólatra em reabilitação. Essa livraria era mais provinciana, tinha um pouco mais de alma, o que me deixou bastante contente. Era minúscula com apenas dois atendentes, decidi fazer uma pequena cena, e comecei a mesma baboseira que já tinha feito com o guri imbecil da primeira loja, perguntei sobre isso e aquilo, mas não dei sorte, o filho da puta conhecia todos os escritores que mencionei, botei na mesa até os autores mais obscuros de quem gosto como Lord Byron, Burroughs, e toda essa velharia esquisita que quase ninguém lê hoje em dia, o divertido foi quando ele começou a jogar comigo e me perguntar sobre autores que quase ninguém lê relacionados a estes que eu já havia mencionado, e convenhamos, ele tinha uma biblioteca a sua disposição enquanto eu era um mero amante de livros com uma paixão esquizofrênica por obscuridade, ele acabou citando uns filhos da puta de quem eu nunca ouvira falar e eu terminei por desviar o assunto pra dentro da filosofia que é um campo ainda mais fodido, sei que decidi desistir quando ele começou a comparar comigo a doutrina das cores de Goethe com as teorias elaboradissimas de Newton. Fui derrotado, mas, e daí? Não se pode vencer todas. Me deu uma puta vontade de apertar a mão do cara, mas eu me contive por que ia parecer meio retardado da minha parte, então só entreguei pra ele um currículo e ele sorriu meio complacente como quem diz “achava que eu era bobo né?”. O sujeito foi bem bacana, bacana mesmo. Mas desde o momento em que entrei na livraria já tive a sensação de que não me contratariam, duas pessoas era mais do que o suficiente, ao menos foi o que me pareceu a principio. Saí dali determinado a jamais entrar num ônibus novamente. Atravessei a redenção aproveitando o sol da manhã e procurando algum lugar pra pegar um expresso ou qualquer outra coisa que me mantivesse acordado por mais algumas horas. Parei num boteco aleatório e pedi uma taça de café sem leite ou açúcar e sentei por um instante acendendo ainda mais um cigarro. Não que eu estivesse com vontade de fumar ou qualquer coisa do gênero, num dia normal fumo uma carteira de cigarros, talvez menos, mas é que naquele instante em particular eu simplesmente precisava de algo pra fazer com as minhas mãos. O café demorou o que me pareceu uma eternidade para chegar. Não reclamei nem nada, imaginei que a minha cara de cu já era desconfortável o suficiente para o rapaz me servindo e tenho uma paranóia de que quando esses caras não gostam de ti, cospem e fazem todo o tipo de nojeira com o que quer que estejam te servindo. Me demorei tomando aquele café, começava a sentir uma dor de cabeça terrível provavelmente por fumar tantos cigarros e tomar tanto café, me sentia todo fodido, como um leproso ou algo assim. Percorri mentalmente o trajeto que ainda teria de fazer antes do almoço e calculei quanto dinheiro me sobraria para comer. Percebi então que estava tomando meu almoço naquele instante, e com isso me senti mais fodido ainda. Nem cheguei a terminar o café por que sentia como se fosse vomitar a qualquer momento, simplesmente paguei o guri e fui embora com uma bituca de cigarro na boca. Atravessei a redenção rumo a cidade baixa em busca da ultima livraria que visitaria naquela manhã, a essa altura já estava tão exausto que todos os pensamentos que me ocorriam vinham como uma massa disforme de idéias abstratas e palavras soltas. Quase nem notei quando cheguei a livraria, onde também haviam apenas dois atendentes, estava tão desmotivado a essas horas que simplesmente deixei o currículo com um deles sem falar quase nada. Duvidei que fossem me chamar de qualquer forma.
Pela hora do almoço quando retornava pra casa, meu celular tocou, pensei que podia ser alguma entrevista e me animei por um instante até ver no visor o nome de uma amiga, estava quase caindo morto, mas pensei que poderia pelo menos descolar algo pra comer então atendi fingindo animação. Ela falou bem rápido, me convidou pra ir a casa dela, que ficava no caminho da minha, dizia que estava sozinha e tinha um monte de cerveja, tanta cerveja que nem sabia o que fazer, estava quase enfiando as latas no cu. Fiquei em silencio por um instante imaginando a cena e em seguida para salvar a cerveja do destino terrível que a esperava decidi atender ao convite, disse que chegaria em cerca de 20 minutos. Peguei novamente o ônibus, num estado que é difícil descrever, me sentia envolto numa espécie de nuvem paralitica. Uma nuvem intransponível que nada conseguia perturbar. Iria cair no sono a qualquer segundo, conseguia sentir, meus olhos começavam a fechar enquanto eu lutava para mantê-los abertos, decidi me levantar para evitar cair no sono e não acordar até estar em Budapeste ou no Sião. A casa dela era bem em frente a parada, quando comecei a me aproximar telefonei para que abrisse a porta assim que eu chegasse. Ela já me esperava com a porta aberta e uma cerveja na mão quando finalmente saí do ônibus. Fui entrando e perguntei como quem não quer nada se tinha algo de comer, ao que ela prontamente respondeu que não, e eu resignado comecei a beber e a falar freneticamente, dando ênfase a cada detalhe enfadonho da minha aventura matinal. Conforme fomos bebendo e conversando, minhas energias pareceram retornar aos poucos, como se me houvessem aplicado uma injeção de adrenalina ou algo assim, em poucos instantes estava elétrico novamente, começamos a discutir poemas, ela me mostrou algumas coisas novas, dentre elas um exemplar de “O perfume” de Patrick Süskind, e um volume de Contos de Caio Fernando Abreu. Enquanto a conversa se desenrolava, as latas vazias de cerveja se amontoavam ao nosso redor. Eu já estava bem bêbado lá pela quinta ou sexta lata, mas simplesmente não conseguia pensar em um motivo bom o suficiente pra não continuar bebendo. Fiquei imaginando como seria engraçado entregar currículos bêbado, fiquei imaginando umas cenas meio Bukowski, como entrar nas livrarias pegar um volume de Sheakspeare e começar a recitar Ofélia ou Rei Lear aos prantos, como naqueles exageros hollywoodianos, e depois é claro dar uma mijada bem no meio da prateleira de poetas ingleses, entregar o currículo com um sorriso cordial e ir embora escoltado pela policia. Decididamente me contratariam. Ao menos eu contrataria um cara com coragem pra fazer isso tudo. Não consigo me lembrar o momento exato, lembro que foi no meio de uma conversa pausada, enquanto tocava alguma coisa de Pink Floyd ao fundo, que meus olhos se fecharam, e por pelo menos 18 horas não tornaram a se abrir.

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quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

Samanta e o canibal (conto)

A noite se recusava a chegar, eu estava angustiado, coisa que não faz lá muito meu gênero. Sempre que estou enrolado com alguém trato a pessoa como lixo, não sei ao certo o porquê disso, meu psiquiatra me disse que é alguma espécie de mecanismo de defesa, e eu acredito piamente nisso porque até então havia funcionado excepcionalmente bem! Me arrumei tomando pelo menos meia hora para cada detalhe, detalhes os quais nem sei se ela notaria, acho que não pra falar a verdade, mas mesmo assim, como o tempo se arrastava podia me dar ao luxo de demorar o quanto tivesse vontade (normalmente me atraso sempre por ser muito letárgico e tudo mais, exceto quando estou excitado ou nervoso, ai acabo fazendo tudo de uma só vez e ficando com tempo de sobra nas mãos, esse era o caso na ocasião) era a ultima noite em que estaríamos juntos, pelo menos a ultima noite antes dela viajar. Saí de casa bem mais cedo do que o combinado, já não agüentava ficar olhando o relógio a cada quinze segundos. Íamos para um open bar na Av. Independência, o mesmo em que nos conhecemos. Acendi um cigarro e abri o portão eletrônico já dentro do carro. Dei a partida sem pressa e saí dirigindo estupidamente devagar. Ia ensaiando o que diria, estava pensando em alguma espécie de monologo de despedida, nada de muito meloso ou preparado, só queria dizer que, não era comum eu gostar tanto de alguém, e que não era comum também eu me sentir assim tão inseguro ou vulnerável, na verdade tinha a impressão de sermos iguais às vezes. Quando brigávamos, não falávamos nada, ficávamos em silencio um ignorando a existência do outro. Isso até que algum decidisse deixar passar, ás vezes levava horas, às vezes dias, mas quando voltávamos a nos entender riamos de nós mesmos, o casal mais introspectivo e misantropo do mundo! Os amigos riam também. De qualquer maneira atravessei o centro no que me pareceu uma eternidade, mal podia esperar pelas dez horas. Parei em um bar pra comprar uma carteira extra de cigarros, um Ferrero Rocher, e tomar um drink pra matar tempo. Vivia enchendo ela de doces, ela adorava! Dizia que eu a estava engordando pra depois comer, não necessariamente nessa ordem, e eu gostava de ver os olhinhos dela quando eu botava do nada nos seus bolsos algum doce qualquer, sem ninguém perceber. A verdade é que eu estava em pânico, me sentia todo escurecido por dentro, como se tivesse tomado algum tipo misterioso de veneno que me deixava sentindo mal o tempo todo, e que só reduzia seus efeitos quando ela estava por perto, mesmo que estivesse me ignorando ou brava com alguma coisa, com aquelas bochechas enormes inchadas formando uma espécie de bico, quase como uma criança pequena. Achava lindo, achava ela toda linda, até as coisas das quais ela não gostava me encantavam de uma maneira hipnótica, eu ficava em transe quando ela estava por perto. E isso me dava um medo do caramba! Não me sentia assim tão desnorteado por uma fêmea desde meus tempos de colégio, quando ainda estava descobrindo certas coisas. Isso de ficar bestificado, com os olhos cravados em um ponto cego por horas a fio, sentindo um aperto indescritível na garganta sem o menor motivo. É torturante! Deviam inventar algum tipo de remédio, uma espécie de Prozac pra guris apaixonados. Ia voar das prateleiras! Mas enfim, terminei meu drink cerimoniosamente, era um uísque que deveria ser bom se o muquirana dono do estabelecimento não misturasse água pra fazer render mais as doses, devia ser judeu, todos os judeus estão sempre inventando alguma maneira maluca de aumentar só um pouquinho os lucros. Que raça mais admirável! Pisados, trucidados, perseguidos execrados, e ainda assim fortes. Orgulhosos de seu sangue. Fico impressionado com o amor incondicional que tem ao dinheiro, pra mim nunca passou de papel, tanto que eu torro dinheiro em tantas coisas inúteis que acabo sempre duro e sem nada. Queria ter um pouco de sangue judeu, mas só um pouquinho, só pra ver se eu aprendia a administrar qualquer coisa, quem sabe eu desse um pouco mais de valor ao trabalho e tudo. Às vezes desconfio que nasci com algum parafuso a menos, minha mãe sempre me diz isso quando nos encontramos num bar ou outro pra tomar uns drinks. Já desisti de contestar, acho até que a velha tem razão, mas de qualquer maneira ainda queria ter um pouquinho só de sangue judeu, pra ver se eu ficava mais inteligente ou perseverante ou qualquer outra das qualidades dessa raça maluca.

Voltei pro carro. Já eram nove e alguma coisa, os ponteiros não se mexiam, num dado momento tive a impressão de vê-los regredir em vez de avançar, esse é que é o problema com os relógios, estão sempre marcando o tempo exato, já dentro da nossa cabeça as coisas não são bem assim, um segundo pode durar quase um dia, e às vezes um dia não dura mais que poucos minutos, já pros relógios não, é sempre a mesma coisa. Entrei no carro e fui dirigindo, ainda estupidamente devagar. Decidi ir logo pra maldita boate e ficar por lá mesmo esperando por ela. Quando estava na metade do caminho, meu celular começou a tocar, era ela, queria que a pegasse em casa. Fiquei contente, mesmo sem entender o porquê, visto que ela nunca havia me pedido isso antes, sempre foi independente, até demais, mas não falei nada disso é claro, talvez pudesse aborrecê-la ou algo assim, com aquele gênio péssimo e tudo. Mudei meu ritmo num instante, cheguei em uns dez minutos, liguei pro celular sem insistir muito só pra que ela visse que já a esperava em frente a casa. Me encostei no carro e acendi outro cigarro enquanto ela saía pela porta da frente apagando as luzes. Puxa, já tinha visto ela quando QUER ficar irresistível, mas esta noite ela estava fenomenal, tive que fazer um puta esforço pra não começar a babar ali mesmo, ou a uivar loucamente como aqueles lobos imbecis dos desenhos da Warner. Ela veio sorrindo, me deu um beijo no rosto e foi para o lado oposto do carro, fui entrando também, sentei um instante e fiquei olhando pra ela, estupidificado, mesmerizado, imbecilizado por aquela visão, aquela súcubos, pronta a drenar minha energia vital gota a gota, me sorver como se eu fosse um copo grande de absinto ou algo assim. Ela me olhou um instante, enquanto também acendia um cigarro, baixou um pouco a cabeça sorrindo e perguntou:

- Que foi? - mostrando aqueles dentes enormes. Aquele sorriso impecável. Fiz um esforço dos diabos pra falar diante daquela aparição. E isso tudo tentando não ser piegas nem nada, mas quando a gente ta abestalhado por uma mulher bonita não há remédio.
- Tu parece algo saído dum livro de mitologia grega, uma ninfa - Falei isso rindo pra soar um pouco como uma brincadeira, mas a verdade é que eu não estava brincando nem nada, estava quase me perdendo naqueles olhos castanho-esverdeados, naquela boca vermelha de lábios grossos, naquela pele branca quase sem maquilagem, estava quase desmaiando. Quando terminei de falar ela riu pra valer, riu da minha cara, eu nem me importei, ri também, pois sei como deve ter sido engraçado ouvir uma coisa assim de um cara como eu, um vira-latas, cético sem o menor amor a vida.
Dei partida e fomos indo bem devagar conversando sobre isso e aquilo, nada de profundo ou sequer interessante, o relógio já ia me traindo de novo, os minutos passavam como fossem segundos, sem a menor piedade. Comecei a pensar em como ficaria quando ela se fosse pra Europa, eram apenas dois meses, ela disse algumas semanas antes, e ao me lembrar disso, imaginei um relógio enorme, em que um dia fosse o equivalente a um ano. Nada faria mais sentido, e o pior é que nem sequer estávamos namorando nem nada, estávamos só enrolados. Mesmo assim não havia nada que eu pudesse fazer, não ia pedir a ela pra ser minha, até porque isso seria contra tudo o que eu acredito. Eu, no entanto, era todo dela, e ela não precisava nem pedir, não precisava fazer absolutamente nada.
Chegamos à independência no que me pareceu um minuto no máximo. Achei um estacionamento bem próximo da boate e escoltei ela até a entrada, a fila estava enorme, dei uma nota de 50 mangos ao segurança pra podermos entrar pela lateral, sem ter que passar por todo aquele martírio, ele me conhecia, sabia que não ia conseguir me arrancar mais nada então me deixou entrar com um aceno discreto de cabeça. Pagamos a entrada e entramos furtivamente pra ninguém reclamar nem nada. A música estava fantástica. Acho que era The Strokes, mas não consigo me lembrar com clareza, subindo as escadas dei um beliscão de leve na bunda dela, aquela bunda escultural! Ela nem olhou pra trás, mas ouvi seu sorriso se abrindo. Achamos uma mesa bem perto do bar, ela já se balançava ao som da guitarra elétrica. Levantei pra pegar uns drinks e quando voltei com três doses de uísque (duas para mim, uma para ela), ela estava conversando com algumas amigas que estavam circulando ali por dentro. Sentei-me atrás dela e a puxei sobre o meu colo, sem cumprimentar ninguém nem nada, todos sabiam quem eu era: “O rolo da Samanta”, essa era a minha alcunha. Eu era cordial e tudo mais, mas nenhum deles realmente me interessava ou me excitava, eram pessoas tediosas, acomodadas, satisfeitas, sem vícios nem dramas, todos preocupados em ser alguma coisa o tempo todo. Mantínhamos uma relação edificada em “ois” e “tchaus” ocasionais, fiquei tomando aquele uísque enquanto elas conversavam sobre isso e aquilo. Eram cheias de piadas internas e expressões particulares, eu basicamente não compreendia nada do que falavam, era grego pra mim, o que me deu uma sensação meio olímpica, ouvindo grego com uma ninfa no colo, imaginei se o bar servia retsina ou alguma outra bebida maluca que me deixasse sentindo ainda mais esquisito. A música continuava ótima, mas não iria descer pra dançar até estar pelo menos um pouco bêbado, então tomei os dois copos de um gole só, ninguém estranhou nem nada, sabiam que eu era um bêbado. Ela já estava me chamando pra descermos, começou a me dar sinais, chacoalhava aquela bunda encima de mim, me deixando excitado pra cacete, depois se levantou subitamente me tomando pela mão. Acompanhei sem falar nada. A pista estava lotada, como era de se esperar, o lugar sempre lotava nas festas open bar, começamos a dançar meio espremidos no meio da multidão, ela dançava como o diabo! Atirava as pernas sobre mim e tudo, com aquele corpo perfeito, aquele rosto perfeito, me olhando como se quisesse me engolir inteiro! Nós suávamos como se estivéssemos transando, apesar do ar condicionado e dos milhares de ventiladores espalhados pela pista, suávamos como se estivéssemos no Caribe, ou bem encima do maldito equador, e era ótimo! Quando me dei conta já era quase uma hora, o relógio me traindo de novo. Cheguei à conclusão de que precisava falar cedo ou tarde, precisava tocar no assunto que nós dois cuidadosamente evitávamos: envolvimento. Comecei a organizar algo na cabeça, algo sólido, ainda dançávamos, avisei que ia pegar mais uns drinks e a esperaria no andar superior, falei que precisava lhe dizer algo, ela demorou a escutar, não notei se de propósito ou não (acredito que sim), tive de repetir umas três ou quatro vezes, mas na ocasião achei que fosse culpa do som ou do caos que era aquela gente toda se amontoando na pista.
Me afastei meio desnorteado e subi as escadas rápido, como que pra acabar logo com aquilo tudo, pedi mais três doses, tomei uma sem nem piscar, e fiquei bebendo a outra, a essa altura já estava começando a ficar bêbado, queria lhe falar tudo antes que estivesse fora do ar. Ela demorou, demorou demais, terminei a segunda dose, dei uma olhada do balcão pra ver se a enxergava, não estava mais na pista, achei que devia esperar mais alguns instantes, devia estar subindo. Em mais alguns minutos terminei a terceira dose. Minha paciência já havia se esgotado depois de 20 minutos, estava ali, sentado no bar, irritado como o diabo, já encarando qualquer imbecil que passasse, reconheci um rosto familiar se aproximando, mas não era o dela. Era uma das amigas, uma gordinha. Ela se aproximou, sentou do meu lado e ficou me olhando com um olhar esquisito. Eu dei um meio sorriso e meneei a cabeça pra ver o que ela queria, ela ficou em silencio por um tempo, no momento não me dei conta, mas era um olhar de pena, uma pena graciosa como se ela fosse Ghandi, ou Madre Teresa. Enfim ela falou encabuladissima:

- A Samanta ta lá embaixo ficando com o Rick... - Baixou os olhos quando disse isso.
- Ela me pediu pra te avisar. - Continuou ainda sem levantar os olhos. Eu sorri. Não estava feliz, nem um pouco, pra falar a verdade nem sabia quem era Rick ou porque exatamente sentia vontade de lhe arrancar as entranhas com as mãos nuas. Não entendia também o sentido daquilo tudo, fiquei sem ação tentando extrair sentido do que a menina me dissera, acho que cheguei a lhe pedir pra repetir uma ou dez vezes o que havia dito, e depois de finalmente entender, sorri novamente e agradeci. Permaneci ali. Bebendo dose atrás de dose, sem falar nada.

Depois da terceira dose consecutiva a menina que veio me avisar se cansou ou se assustou (pouco importa) e decidiu por bem me deixar sozinho, até porque eu não parecia lá muito abalado, sorrindo e tudo e ela devia ter mais o que fazer do que ficar ali com um praticamente estranho. Samanta apareceu mais tarde, bem mais tarde, veio como se nada houvesse acontecido. Não me deu satisfações, só me tocou o rosto, com aquelas mãos molhadas do suor de outro cara, eu sentia o cheiro do cara nela, mas não falei nada, nem me mexi, nem sequer a olhei. Continuei bebendo, ela começou a falar.

- Desculpa... Não queria ir embora e te deixar aqui, pensando em mim. - Me olhou como se isso fizesse muito sentido, como se fosse um ato de compaixão ou algo do gênero. - Afinal, não temos nada! Não fica bravo. - Ela continuou. Tentou me beijar, e eu deixei a principio, mordi a boca dela com tanta força, que acho que até hoje lhe falta um pedaço daquele lábio inferior carnudo. Ela gritou e se afastou cobrindo os lábios. Sangrando pra burro. Peguei mais três doses pra viajem, e fui embora.

No dia seguinte ela viajou pra Europa, mantivemos contato escasso desde então, ainda lembro o rosto dela naquela noite, o medo que sentiu quando dilacerei seu lábio inferior, o guri com quem ela ficou, o tal de Rick, nunca cheguei a ver pessoalmente, ou talvez tenha visto e não dei muita atenção. Quanto a ela, nunca mais vi. A propósito, o Ferrero Rocher que não cheguei a entregar a ela, dei de presente a uma prostituta com quem cruzei na mesma noite, uma verdadeira artista e entusiasta da profissão.

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quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

Filosofódas (conto)

Era um apartamento grande no bairro Menino Deus, os pais dele estavam viajando, então tínhamos a casa inteira a nossa disposição. Não que isso fosse novidade, estávamos juntos a já alguns meses, talvez dois ou mais. O apartamento era no térreo, e eu não tinha permissão pra fumar dentro dele, a casa sequer tinha cinzeiros, de qualquer maneira estava frio demais pra abrir a maldita janela, e como estava de mau humor decidi ascender uma porra de um cigarro encima da cama mesmo. Deitado, olhando praquele ventilador de teto branco imóvel, quase invisível no teto da mesma cor. Ele me olhou quando ouviu o som do isqueiro, ia reclamar, mas não falou nada. Não falávamos nada havia quase meia hora já, o clima estava ficando pesado. Uma garoa começou a se anunciar pra tornar tudo ainda melhor. Quando do nada ele se virou na cadeira giratória, olhei pra ele, e notei uma pagina de internet aberta imóvel já a quase tanto tempo quanto durara nosso silencio. Ele me olhou longamente, estava organizando as palavras dentro da cabeça de forma que soassem casuais quando ele as cuspisse na minha cara. Esperei pacientemente, deitei novamente e continuei a fumar meu cigarro. Em alguns instantes ele começou a falar, eu não o olhava então, estava concentrado no ventilador e no teto branco, pensando se ausência de cor poderia denominar uma nova cor – Branco – A verdade é que não tinha a menor vontade de estar ali, pelo menos não naquele momento. Pensei em ir até o centro e pegar uma garrafa de bebida, assim que o outro terminasse de falar. Ele começou meio sem jeito, falou algumas coisas a esmo e por fim soltou tudo de uma vez.

- Acho que devíamos terminar. - Ele falou desviando os olhos pro chão. Talvez estivessem molhados, gosto de pensar que sim. Em todo o caso não me mexi, nem esbocei reação, fiquei ali, fumando. Ele gaguejou qualquer coisa, não dei muita importância, interrompi antes que começasse.
- Por que tu diz isso? - Ainda sem me virar.
- Para de fumar aqui dentro... - Fiz silencio. Ele continuou.
- Isso ta ridículo já, a gente se odeia, não consigo nem ficar perto de ti. Acho que devíamos sair com outras pessoas. Podemos continuar amigos. Na verdade acho que nunca fomos muito mais que amigos. -

Levantei ainda fumando, ainda em silencio, catei minhas coisas, e fui saindo, chovia mais forte agora, por sorte estava com uma jaqueta velha de couro e alguns trocados extras no bolso. Ele ficou me olhando pegar as minhas coisas, os olhos cheios d’água, um certo rubor no rosto. Decidi me mandar logo antes que ele começasse a chorar pra valer, se tem uma coisa que me parte o coração é ver os outros chorando. Sério, fico sem reação, nunca sei o que fazer, acabo sempre dizendo algo idiota ou fazendo besteira, mas o que se pode fazer? Eu fico nervoso pra caralho!

- Aonde tu vai? - Ele perguntou com a voz já meio engasgada.
- Out - respondi, tenho mania de lançar palavras em inglês quando não encontro uma que expresse exatamente o que quero dizer em português.
- Sair com outras pessoas quem sabe - disse isso vestindo a jaqueta e abrindo a porta. Não olhei pra trás, mas podia ouvir ele me seguindo pela casa até a saída. Tentei sair bem rápido pra não ter que dizer mais nada, por que nessas situações parece que quanto mais se fala, pior a coisa fica, é melhor deixar tudo como esta, não se aprofundar muito em “razões e emoções” ou então acaba virando novela. Já tinha todo um plano traçado, ia ligar pra algum vagabundo e comprar uma vodka barata, talvez alguns cigarros e ficar pelo centro até sentir sono o suficiente para ir para casa dormir. Quando atingi a porta ele me segurou pelo braço, dei um puxão forte, e me desvencilhei, visto que sou bem maior e relativamente mais ignorante que ele não houve sequer reação. Porém, quando saí porta a fora, ouvi um soluço. Merda! Pensei comigo mesmo. Aqui vamos nós. Olhando para traz vi que ele estava mesmo chorando o filha da putinha, a principio me deu muito ódio por que eu sabia que não ia conseguir ser frio com o cara se debulhando em lagrimas na minha frente, puta merda que enrascada, comecei então a falar um monte de coisas sem o menor sentido, por que, como eu disse antes, sempre acabo fazendo merda se alguém começa a chorar, é fatal, é só alguém começar a chorar perto de mim que fico todo atrapalhado, falo coisas que nem sei de onde vem só pra ver se consigo acalmar o infeliz! Acho que até pedi o guri em casamento, pra ver se o diabo parava de chorar, como não surtiu resultado algum e eu não estava com a menor vontade de conversar decidi chutar o balde de vez, falei meio que gritando.
- Olha aqui, tu acaba comigo, diz que me odeia e depois fica ai chorando pra caralho só por que eu vou embora, vai se foder, não to nem ai também, pode fica ai chorando eu vou embora do mesmo jeito, se quiser fala comigo sabe onde me acha. - Dei as costas e fui embora, ele não tentou me seguir dessa vez, só bateu a porta bem forte, acho que não gostou do que eu disse, mas na hora eu nem dei bola, gostava dele e tudo o problema é que as pessoas esperam demais umas das outras, hoje em dia não basta gostar, estar por perto e tudo mais, a gente tem que ter dinheiro na carteira, ter um emprego uma rotina, um monte de merdas que eu simplesmente não tenho, e nem vou ter tão cedo eu acho, esse negócio de mudar é difícil pra caramba, não é assim da noite pro dia, e no fundo ninguém QUER mudar, um relacionamento é composto de duas (ou mais) pessoas, só que fica sempre essa merda de tentar domesticar o outro, eu me recuso a ser domesticado, por isso meus relacionamentos terminam quase sempre assim, eu vou embora simplesmente, não adianta ficar batendo na mesma tecla até gastar o maldito dedo, é simples, ou funciona, ou não funciona.

Depois desse episódio peguei o primeiro ônibus que passou, estava chovendo pra burro, eu tava ensopado, não tinha lugar pra sentar, e as janelas estavam todas fechadas, me senti um legume, sendo cozido no vapor, apesar do frio do lado de fora, a temperatura no ônibus estava insuportável, acabei descendo umas duas paradas antes pra ver se eu parava de suar, e por que gosto mais de frio e chuva quando se esta agasalhado do que de ser cozido no vapor, acho que se eu fosse algum tipo de comida seria um sorvete, não suporto calor, começo a derreter, a suar baldes e mais baldes, nunca conseguiria levar a vida de um legume, da mesma maneira acho que jamais conseguiria viver na Bahia, ou Rio de Janeiro, é simplesmente perto demais do maldito equador, fico imaginando se aquela gente sua o tempo todo, e na maioria das vezes me convenço que sim, mas de qualquer maneira desci algumas paradas antes e fui andando pela chuva, estava chegando perto da perimetral, quando vi uma silueta conhecida em uma parada adjacente, reconheci pelas roupas escuras, e pelos acessórios metálicos espalhados pelo corpo todo. Era o Jean, um amigo paulista que morava em porto alegre também, ótima companhia pra se derrubar uma garrafa de vodka barata, ótima companhia pra diversas coisas por sinal, jogar xadrez, brigar na rua, bater carteira, roubar bebidas, enfim todo e qualquer tipo de atividade que envolva adrenalina pra cacete. Corri até a parada pra evitar que ele entrasse em um ônibus qualquer, ele me viu vindo e já abriu um sorriso, acho que na verdade não estava sorrindo, estava rindo de mim, todo ensopado com o cabelo caído sobre a cara correndo no meio da chuva. Nunca saberei ao certo, e pra falar a verdade também, pouco me importa.

- E ai cara! - disse eu entusiasticamente
- E ai! - respondeu de imediato enquanto já me seguia rumo à Cidade Baixa. Sei que fomos conversando sobre isso ou aquilo, ele me contou como tinha sido maluco o seu dia, e eu convidei ele pra tomar uma vodka comigo antes de ir pra casa, ele obviamente aceitou sem nem sequer pestanejar, agora isso sim é um guri! Fiquei pensando, enquanto falava sobre coisas aleatórias, no rumo que poderíamos tomar. Algum lugar pra se sentar durante uma noite de chuva e beber mais tranquilamente. Passamos num mercado pela Lima e Silva e compramos a bebida e uma carteira de cigarros bem vagabunda, em seguida ele sugeriu que fossemos pra casa de um amigo dele que ele queria me apresentar a algum tempo já, eu havia contado a estória, e ele achando formidável o meu estado de espírito decidiu me apresentar um garoto que ele conheceu numa noite dessas. Atravessamos toda a Cidade Baixa sob uma chuva torrencial inextinguível, eu estava molhado até os ossos e ele também, mas não nos importávamos nem um pouco, desde que não molhássemos a bebida ou os cigarros. Paramos por alguns instantes no posto Ipiranga da João Pessoa, e tomamos pelo menos um terço da garrafa aos martelinhos, enquanto fumávamos alguns cigarros protegidos da chuva, eu já estava achando meio imbecil andar tudo aquilo só por uma foda, mas não tinha nada de melhor pra fazer e decidi continuar com aquela idiotice até o final fatídico, ele começou a me falar do guri que ia me apresentar. Falou que era ateu, que era de São Paulo, que estava aqui estudando filosofia, e que já tinha lido todos os grandes, desde Goethe, Baudelaire e Rimbaud, até Miller, Bukowsky e Burroughs, eu fiquei encantado, achei que ia conhecer uma foda, e no fim estava às margens de conhecer um filosofo. Talvez um poeta! Pedi para irmos duma vez, e ele me informou que era logo na esquina. Fiquei ainda mais excitado, ainda chovia muito forte então sugeri que acendêssemos mais um cigarro antes de ir, e assim fizemos, fumamos descansadamente enquanto a garrafa já chegava a sua metade. Já estávamos um tanto bêbados, mas não o suficiente ainda. Caminhamos então até a casa do guri, que era mesmo logo na esquina, ele tocou o interfone e logo o cara respondeu lá de cima, tinha um sotaque estranhíssimo, meio arrastado o que me lembrou um pouco a Bahia e aquela estória toda dos legumes baianos, comecei a rir já meio bêbado, mas decidi não dizer o porquê, pensando que achariam que sou maluco. Quando o cara veio, eu fiquei ainda mais contente, esperava que ele fosse feio e esquisito, imaginei assim não sei bem o porquê, talvez pela voz no interfone ou pela imagem dos baianos sambando na minha cabeça bêbada, sei que entramos e em nem cinco minutos a chuva acalmara lá fora (lei de Murphy), ele nos recebeu um tanto efusivamente dando abraços e tudo o mais, o que eu achei super estranho, mas não liguei muito já que estava bem na onda da agarrar o guri. Entramos e o seguimos até o segundo andar, ele abriu a porta revelando um nicho cheio de livros e garrafas pela metade atiradas pelos cantos, notei então que ele também estava um pouco bêbado, e fiquei ainda mais contente. Tocava um som no computador em alguma das salas vizinhas, não me dei ao trabalho de verificar em qual por que isso pouco importava, era algo frenético; agressivo; autodestrutivo; auto-indulgência insana; Mindless self indulgence. Como falei às vezes uma língua só é pouco pra expressar certas sensações ou estados de espírito. Comecei a cantar junto loucamente e meio que me chacoalhar em um ritmo febril, o guri foi pegar mais umas cervejas na cozinha, e voltou um pouco depois com duas garrafas e uma toalha, eu e o Jean nos secamos e continuamos a conversar descontraidamente, e a beber é claro. A ligação foi inevitável, em poucos minutos estávamos falando de tudo, música, filmes, livros, pessoas, acho que em certo ponto até contei o que me acontecera mais cedo, não me recordo por que a vodka já estava terminando e só eu estava bebendo ela ainda, Em algum ponto da noite deitamos todos sobre o carpete e ficamos fumando, olhando para o teto, a chuva havia parado completamente e havia um silencio imperioso, a playlist tinha terminado, ninguém tinha coragem de romper aquele silencio. Uma das respirações tornou-se mais alta repentinamente. Eu reconheci os grunhidos do Jean, reconheceria em qualquer lugar, cada pessoa faz um som característico quando cai no sono sem querer, ele não roncava nem nada, só respirava muito alto, como se estivesse transando, e às vezes dava uns grunhidos como uma criatura, imaginei ele na selva, como um animal, numa caverna ou algo do gênero, hibernando quem sabe. Tenho todo o tipo de pensamentos estranhos quando estou muito bêbado, e eu estava muito, mas muito bêbado. Não lembro quem se mexeu primeiro, sei que no segundo seguinte estávamos nos beijando enfurecidamente, eu e o guri, ambos bêbados, fomos para o quarto, a música deixara de tocar, ouvíamos a música dos nossos corpos, os suores, as línguas, as respirações se cruzando no ar, dois corpos insistindo por ocupar o mesmo lugar no espaço, foi ai que eu entendi! O lance de domesticar. As pessoas querem se tornar uma só. É uma espécie estranha de possessão, em que, você não domina o corpo, mas impõe limites a ele, mesmo que não te pertença. Como uma marionete, você não quer um ser humano, genuíno, livre, você quer um brinquedo. Um boneco, alguém que se molde a suas vontades, feito uma argila, uma paranóia meio divina, moldar um ser humano da argila, como se você fosse Deus. Mas não da certo por que o ser humano é basicamente, um amontoado de defeitos e manias, e mudar isso é destruir o que há de humano nele. A disciplina destrói a humanidade, o amor destrói a humanidade, quando tive essa epifania no meio de uma transa, bêbado sobre a cama de um desconhecido, percebi que jamais teria um relacionamento de novo, e por estranho que pareça não senti qualquer horror nisso, soava algo completamente natural e realizável. Quando terminamos a transa, horas depois, voltamos para a sala semi-nus pra fumar uns cigarros e beber mais um pouco. Jean estava sentado diante do PC com o resto de vodka que eu não conseguira derrubar. Acho que tinha fingido adormecer pra que a gente pudesse ir pro quarto ou algo assim, mas nem falei nada. Estava um clima muito bom agora, a música havia voltado a tocar, estava amanhecendo e o céu tinha um tom entre o azul da noite e o amarelo bem claro quase invisível. O guri me convidou pra passar a noite com ele, mas diante de minha recém descoberta nova filosofia recusei educadamente, sem dar explicações nem nada. Ele pareceu um tanto desapontado, mas não reclamou também. Fiquei imaginando se também tinha tido uma epifania semelhante em alguma noite bêbada. Por fim eu e o Jean deixamos o apartamento e fomos pra casa, terminamos a vodka no caminho, e eu levei os cigarros por que sou bem mais dependente deles do que o meu companheiro. Fui pra casa numa nuvem de satisfação, algo de mágico acontecera, em algum ponto da noite, não sei dizer bem ao certo quando. A sim, o nome dele era Rafael.

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