quarta-feira, 26 de agosto de 2009

Lady Raíssa (conto)

André sempre foi diferente. Aos nove anos o pai pegou ele no quarto, provando calçados e calcinhas, e bateu tanto nele que era de se imaginar que nunca iria acontecer de novo, ele parou no hospital com umas costelas fraturadas e uma concussão, deu até conselho tutelar, mas no fim acabou voltando pra casa mesmo. Sempre preferiu brincar de coisas mais femininas, bonecas e casinha, coisas de mulhersinha, mas a partir desse dia teve que brincar escondido, não era uma tarefa difícil porque o pai nunca estava em casa, sempre bebendo pelos botecos da vila, e a mãe trabalhando quase 24 horas por dia pra sustentar a família grande. Aos doze já tinha todo um jeitão diferente até de caminhar e de falar, e ficava se perguntando por que não era igual aos outros meninos, também sabia brigar e correr atrás de bola, só não gostava, não particularmente. Ficava tentando entender porque todo mundo tratava ele tão mal e chamava ele de maricas, veado, queima rosca e inúmeros outros apelidos. Tinha só um amigo, e eram amigos em segredo, saiam pra brincar separados e se encontravam numa sanga um tanto longe da vila, era um outro guri que também gostava de meninos, mas por algum motivo não tinha todo aquele jeitão, era um pouco mais velho que ele, talvez dois anos ou mais, se chamava Raí. E aquela era a única forma de carinho que André conhecia, até então pelo menos. Um fim de tarde ele foi assistir os outros guris jogarem bola no campinho, gostava de ver o Raí jogando, mesmo sendo humilhado e sempre acabar levando umas bofetadas e empurrões, ele nem se importava mais, depois de um tempo já tinha parado de chorar e de sentir quase qualquer coisa, ficava ali mergulhado em apatia, assistindo atentamente todos os movimentos do Raí, seu único amigo, uns outros meninos acabaram notando que ele seguia Raí com os olhos, com um olhar carregado de paixão, paixão adolescente. Começaram a comentar, a tirar sarro, fazer zueira. Raí não disse nada, a gritaria continuou até que Raí simplesmente teve que reagir, ou seria também taxado de veado, bixa, queima rosca. E ele reagiu, marchou até a beirada do campo e lhe enfiou umas porradas na cara, derrubou André no chão, chutou, etc. E André que achava que não conseguia mais chorar, descobriu que conseguia sim. A despeito desse episódio, eles continuaram a se encontrar na sanga, mas agora era diferente, tudo era diferente, não era mais carinho, era ódio, era uma paixão cheia de ódio. Isso se seguiu por anos, até que um dia, alguém viu, viu os dois no meio do mato, um encima do outro. Não demorou muito pra todo mundo ficar sabendo, não demorou muito pro pai do André ficar sabendo, e quando soube, esperou o filho sair de casa, e o seguiu até a sanga sem que esse notasse, esperou os dois tirarem as roupas, bêbado e bêbado de ódio e reprovação, saltou do esconderijo, facão em punho.
Ninguém nunca mais viu o Raí. André ficou com uma cicatriz no meio da cara pro resto da vida. Uma marca larga de facão. O pai dele deixou ele ali agonizando, André não morreu, não fisicamente pelo menos. Também não voltou pra casa, passou a morar na rua junto com um bando de outros meninos que meio que o salvaram, estavam indo se esconder na sanga pra fumar pedra, e viram um piá atirado sangrando, fizeram o que podiam pra conter o sangramento, quando André acordou estava no meio deles. Moravam na rua, se conheciam de vista, da vila, entre eles ninguém era melhor que ninguém, eram como ratos, sub-humanos, comiam lixo, fumavam crack embaixo das pontes do centro, roubavam, se prostituiam, o que desse na telha. André começou a conhecer a zona da Farrapos, compravam droga de um traficante meio paranóico e completamente psicótico, mas pra André isso não bastava, ele queria mesmo é se vingar, se vingar de todo mundo, se tinha um canivete ou arma na mão, era sanguinário, não ia atrás do dinheiro, ia atrás da vingança. Mais dia menos dia teve que bater de frente com o traficante por causa de uma divida d’um outro menino do bando, pouco mais novo que ele, o traficante chegou no galpão onde eles dormiam metendo chumbo pra tudo que era lado, uns guris morreram, os mais novinhos, outros fugiram, mas não André, ele ficou ali, se escondeu atrás de um barril daqueles grandes que se usa de lixeira, não tinha arma, só um pedaço de vidro quebrado que achou no chão na hora. Esperou o traficante dar as costas e enfiou quase 10 cm de vidro pra dentro da garganta do cara. O cara sangrava feito um porco, morreu ali mesmo, não levou 5 minutos pra morrer de hemorragia. André revistou os bolsos do filho da puta, e achou um monte de notas trocadas, umas três balas de revolver, e uma pedra enorme de crack. Dali pra diante André deixou de ser André, ele era o cicatriz. Se tornou traficante, conhecia as ruas e as pessoas como a palma da mão, foi fazendo fama e fazendo grana, não tinha nem 15 anos quando alugou o primeiro quarto num hotel barra pesada da Voluntários. Tinha dinheiro na mão, tinha nome na rua. Tava sempre trocando chumbo com traficante e policia, mesmo assim, ainda era aquele gurisinho, que gostava de brincar de boneca e se esfregar em outros gurisinhos. Começou a freqüentar a noite, a conhecer gente como ele, em certas noites se sentia quase parte daquilo tudo, como se finalmente tivesse encontrado o lugar onde não era diferente. Comprou umas roupas bacanas. Com dinheiro na mão se vestia cada vez menos de guri, e então de uma semana pra outra como por passe de mágica, André finalmente deixou de existir, ele dava lugar pra outra entidade, uma entidade amável e corajosa. Nascia Lady Raíssa. Uma noite numa boate barata na Cristovão Colombo, conheceu um homem bem bacana que também era traficante. O nome dele era Jesus, e tratou André como ninguém jamais tinha tratado antes, com carinho de verdade. Na mesma noite em que se conheceram, terminaram no quarto de André, se amando até amanhecer. Começaram a se ver diariamente, se ajudavam em todos os aspectos e gostavam mesmo e cada vez mais um do outro. André se sentia feliz como não era a muito tempo. Ninguém falava nada, ninguém mais chamava ele de veado, de isso de aquilo. Ele era respeitado, ele era mais do que respeitado, era temido, tinha conquistado seu lugar no mundo a bala e ponta de faca. O que fazia com quem devia grana de droga já tinha virado lenda urbana, seu "marido" também não era lá muito piedoso, tinha tido uma história em alguns aspectos até pior que a de André. Faziam uma dupla engraçada, André um negro alto com o corpo quadrado encolhido dentro daquelas roupas de mulher, e Jesus um alemão bem baixinho e desdentado. Num domingo quando circulava pelas bandas da lima e silva atrás da clientela, André se viu numa rua deserta e ouviu um grito vindo de trás. Quando olhou viu um carro vindo rápido na sua direção “não é os home” pensou consigo mesmo, precipitou o caminhar pra encontrar algum lugar mais movimentado achando que fosse algum outro traficante querendo disputar ponto, mas no segundo seguinte quatro neo-nazistas saltaram do carro e o cercaram. André tentou sacar o canivete de dentro da bolsa, mas um bastão o atingiu na cabeça, eles o lincharam, estupraram e fugiram rapidamente sem deixar rastros ou testemunhas. André se levantou se apoiando na parede, sentindo o sangue escorrer pela boca, se recompôs e tomou o rumo de casa, o cu sangrando a cabeça a mil, a falta de ar que sentiu aos nove anos, quando o pai lhe quebrou as costelas. Antes de voltar pra casa ainda passou num mercadinho e comprou uma garrafa de cachaça, foi desinfetando os ferimentos conforme andava. Chegou no quarto de hotel depois de andar meia Porto-Alegre. Tomou um banho e esperou Jesus que foi chegar só umas horas depois, querendo mais crack pra negociar na rua. Quando Jesus o viu, com o olho roxo e a boca cortada foi tomado por uma fúria assassina. André disse pra que não se preocupasse, que eles iam pagar de uma maneira ou de outra. Jesus telefonou pra alguns ratos atrás de qualquer informação a respeito dos carecas. Um punk amigo dele falou que tinha visto uns carecas de carro no Parcão á pouco tempo, quando André ouviu isso se levantou da cama mecanicamente e saiu seguido por Jesus. Pegaram a brasilia velha, que só usavam pra serviços, André colocou no porta-malas um galão de gasolina que tinham guardado, sem dar qualquer explicação. Rumaram pro local indicado o mais rápido possível. Quando chegaram nas proximidades, desceram do carro pra não chamar atenção, as armas na cintura, Jesus bufava de ódio. Encontraram depois de uma hora quatro carecas encostados num carro tipo, não fizeram nada, só ficaram de tocaia. Aproximadamente uma hora depois começaram a se dispersar, dois subiram no tipo e os outros dois foram cada um pra um lado, André e Jesus seguiram um dos rapazes até o ponto de ônibus, deram-lhe um tiro no joelho e o arrastaram aos gritos até a brasilia. Levaram o guri até a beira do Guaíba, Jesus tirou o careca pra fora do carro a coronhadas, gritando ordens, alucinado, quase ininteligível, o garoto chorava, estava todo mijado, babando e implorando pela vida, André que até então estava apático, apareceu com uma chave de roda, e um a um estraçalhou os ossos das pernas e braços do rapaz. Seu olhar mudara, tinha voltado nesse instante a ser Cicatriz, o assassino voraz. Jesus queria matar o guri, mas André disse que não e arremessou o careca pra dentro da brasilia, olhou nos olhos do guri, fixamente, sem resquício de qualquer sentimento, e perguntou com toda a calma, onde moravam os outros. O guri falou na mesma hora. André cobriu a boca do careca com uma meia calça que estava jogada por sobre o banco e Jesus guiou até o primeiro endereço. Era um apartamento na Oswaldo quase entrando na Protásio, desceram do carro com uma velocidade assustadora, como predadores cercando a presa, saltaram o portão e renderam o porteiro, fizeram ele levar os dois até o apartamento certo, chutaram a porta, o rapaz ainda estava acordado deitado sobre o sofá, tocaram o porteiro pra dentro. Enquanto Jesus mantinha os dois parados com a arma. André encharcou de gasolina toda a mobília, foi tudo muito rápido, o careca até tentou reagir, mas Jesus disparou duas vezes contra ele e esse caiu sentado, os pais do garoto vieram até a sala só a tempo de ver Jesus correr porta a fora e acender o rastro de gasolina com um isqueiro “bic”. Seguiram pro terceiro endereço, não conversavam, Jesus ainda furioso olhava pela janela com os olhos molhados e mordendo a mão, estava preocupado, sabia que cedo ou tarde dariam de cara com a policia e a coisa podia engrossar pro lado deles. André parecia tomado de uma calma angelical, sua mente estava clareando, ainda não tinham terminado. A outra era uma casa grande lá pelos lados do Partenon, invadiram pulando o portão, um disparo contra a fechadura, um pé na porta. Entraram quebrando tudo, tocando tudo pro chão. O rapaz não estava em casa ainda, então eles só mataram os pais que despertados com o alvoroço não tiveram nem tempo de implorar pela vida. Mancharam de sangue as paredes e atearam fogo nos cadáveres. A essas alturas, o guri que estava no banco de trás agonizava, delirando de dor. André e Jesus o levaram de novo até a beira do Guaíba e o estupraram até a morte, celebrando a chacina depois na maloca d’um primo de Jesus, perto do morro da Tuca, com cachaça barata, amor e crack. Entraram madrugada a dentro fumando e bebendo.
Voltaram pro centro uns meses depois, quando a poeira já tinha baixado, passaram um mês retomando a velha rotina, encontrando clientes saindo pras festas. Até que uma madrugada, bem perto do amanhecer, por volta das cinco e alguma coisa, Jesus achou ter ouvido um ruído no corredor, catou o revolver e ficou muito alerta. André falou pra ele parar de viajar e ir deitar um pouco, enquanto pintava as unhas roídas e quebradas pela milésima vez naquela madrugada, Jesus então pensou ouvir uma voz, apontou a arma pra porta e deu dois disparos se afastando rapidamente, a porta foi arrombada por uma perna fardada, o policial caiu ao chão sangrando pelo disparo, apenas um o atingira no pescoço, outros três entraram atirando, as balas de Jesus haviam acabado, ele se apressava em encontrar mais projeteis pela extensão visível do quarto, “oficial ferido” uma voz falou, uma saraivada de disparos arremessaram Jesus janela a fora, André tentou ampará-lo antes que esse caísse pela janela, mas foi detido por três policiais, algemado, brutalmente torturado, e eventualmente morto.
O oficial baleado no pescoço era pai de um dos neo-nazistas.

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3 comentários:

um coração sujo de tinta. disse...

tarantino sangrento owyeahs!!!

um coração sujo de tinta. disse...

jesus mora na praça jaime telles aqui na santana e agora atende pela alcunha de piu-piu
engravidou uma pedrera e ficam os dois fumando pedra a luz do dia na calçada. se eles pedem café e a gente não dá, ficam esculachando e chamando a gente de burgueis. XD

Malditos Cabos Engordurados disse...

ei, o nome do piu-piu eh jesus? eu fiz a adoção do filho dele com a pedrera,q alias se chama maria alice, e foi criada na glória por sua mãe maria lucia, que eh meio retardada, e seu pai antonio que eh alcoolatra,eh se nao morreu ainda, senao era. dae a criança deles nasceu loira de olho azul e sem pedra no sangue, por milagre de nosso senhor. bom ter noticias deles... na jaime telles eh?? :)